15 de março de 2024

A tríade trágica


Todo ser humano passa pela tríade trágica: dor/sofrimento (todo mundo vai sofrer), culpa (todo mundo vai errar) e morte (todo mundo vai morrer). A única forma de não passar por essa tríade seria não existir.

Passo 1. Aceitar/admitir a tríade trágica com coragem. Portanto, a pergunta "por que eu?" não faz sentido à luz da tríade trágica. O que faz sentido é perguntar-se "por que agora?" ou, melhor ainda, "por que não eu?"

Passo 2. Compreender o trauma. Em outras palavras, buscar compreender o sofrimento mediante a contextualização, entendendo como o sofrimento aconteceu. A ideia não é encontrar uma "explicação" para o sofrimento, mas preparar para a posterior conferência de novos significados às experiências traumáticas. O sentido da vida continua a existir nas experiências traumáticas porque elas fazem parte da vida. A ideia não é buscar um "porquê", mas um "para quê". O homem que enfrenta o sofrimento e é capaz de transformar o sofrimento em conquista é o que Frankl chama de homo patiens e também de “homem superior”, por ser esta a maior capacidade humana. Alberto Nery chama esta transformação de “alquimia do sentido”.

Passo 3. Aprender a praticar o perdão. O perdão é uma escolha, mas pode ser aprendido e exercido. Perdoar é uma noção de magnanimidade, ou seja, é colocar-se acima do sofrimento. Mas note que a ideia é não apenas perdoar o próximo quando somos vítimas, mas perdoar a si mesmo porque boa parte do nosso sofrimento tem a ver com culpa. Quando nos culpamos nos colocamos como vítimas de nós mesmos. Lembre-se: a culpa faz de você outra pessoa, portanto culpar-se prolongadamente é não apenas prejudicial, mas irracional. A culpa é um privilégio que nos faz refletir, mas não podemos nos deter na culpa. Para as pessoas religiosas, perdoar a Deus é fundamental porque as experiências traumáticas podem fazer com que elas percam sua fé.

Portanto, superar um trauma significa que aquilo não vai doer mais, ou pelo menos não dói a ponto de lhe “ferir” novamente. O trauma será lembrado como um pesadelo, como algo que durou pouco. É como uma cicatriz que aponta para uma ferida que um dia doeu.

Fonte: Alberto Nery, A logoterapia e a superação de traumas emocionais, YouTube, 2019.

14 de março de 2024

A guerra invisível


Vimos em inúmeras postagens neste blog que todo aperfeiçoamento espiritual requer um processo fundamental sem o qual o progresso que se obtenha neste campo não passará de ilusão ou coisa pior. Trata-se da purificação do coração. Jesus Cristo deixou claríssimo, ao contrário do que popularmente se acredita hoje em dia, que é do coração que saem os maus pensamentos, os adultérios, as fornicações, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Isso é assim porque os homens, por amor-próprio, cultivam sua imagem, sua grandeza, sua reputação, seu orgulho. Fazem deuses de si mesmos e assim se autoiludem ao construírem uma torre de Babel em seus corações. Essa torre, esse ídolo, é o ego. O ego ocupa o coração do homem e é ele quem produz todo tipo de impureza e maldade.

A purificação do coração é pré-requisito para o progresso espiritual. Sem ele todo pretenso aprimoramento será apenas e tão-somente mais um tijolo na torre do ego. Imerso em sua própria ilusão, o indivíduo assegura que está progredindo espiritualmente quando, na verdade, está progredindo na estrada da perdição.

É neste contexto que a obra do padre católico romano Lorenzo Scupoli foi traduzida e editada por São Nicodemos Hagiorita e posteriormente revisada por São Teófano, o Recluso. Ambos reconheceram o enorme valor e importância dessa obra para os cristãos contemporâneos.

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A purificação do coração apresenta três caminhos:

a. Caminho moral: a disciplina da vontade e do caráter para neutralizar as paixões ao mesmo tempo que enaltece as virtudes.

b. Caminho contemplativo: a disciplina do intelecto, pela qual o homem educa os sentidos, a memória e a imaginação ao mesmo tempo que se educa para perceber Deus em todas as coisas materiais e Sua ação na história. Um estágio mais avançado incluir livrar a mente das imagens sensíveis (visão e imaginação) a fim de atingir a gnosis e a sophia.

c. Caminho noético: a disciplina do noûs, pela qual o homem, mediante deprecações (súplicas), orações, intercessões, e ações de graças (1 Timóteo 2:1), comunica-se com Deus para obter o necessário para atingir a hesychia. Este estágio é o da oração pura, na qual a imaginação e o intelecto cessam de intrometer-se na comunhão com Deus.

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Eis os destaques dos 53 pontos da guerra invisível:

1. Somos chamados à perfeição, e a maior e mais perfeita aspiração dos homens é aproximar-se de Deus e viver em união com Ele. No entanto, há nos homens vontades e desejos que clamam por satisfação e que não obstante nada tem a ver com a vontade de Deus. É necessário, portanto, que os homens lutem incessantemente contra si mesmos e contra tudo aquilo que desencadeie e insufle suas vontades e desejos. O homem nunca será livre enquanto for escravo de suas paixões.

Há 4 disposições fundamentais para essa guerra:

a. Sempre desconfie de você em tudo.

b. Cultive em seu coração a confiança única e exclusiva em Deus.

c. Lute sem cessar.

d. Coloque-se constantemente em estado de oração.

2. Deus quer que tenhamos consciência e experiência de nossa insignificância. Deus é a fonte suprema de toda boa ação e bom pensamento. Há 4 atitudes a serem tomadas aqui:

a. Conscientize-se de sua insignificância. “O fundamento de toda virtude é a conscientização da fraqueza humana”. (São Máximo, o Confessor)

b. Peça ajuda a Deus em orações calorosas e humildes.

c. Acostume-se a ser cauteloso e temer seus inúmeros inimigos.

d. Se cair em alguma transgressão, rapidamente volte-se à conscientização de sua fraqueza. Deus permite nossas transgressões para que nos tornemos cônscios de nossa fraqueza. Note, no entanto, que nem sempre Deus usa este subterfúgio, mas apenas quando as atitudes a, b e c acima não são seguidas e/ou não surtem efeito. Deus também faz uso, nestes casos, de “má sorte”, doenças, tribulações perigos, necessidades.

3. Não devemos simplesmente desconfiar de nós mesmos e nos desesperar. Não, devemos desconfiar de nós mesmos e confiar em Deus. É Ele quem sabe o que é realmente bom para nós. A vitória (salvação) lhe será concedida.

4. O critério que distingue o homem autoconfiante do homem que confia em Deus é que aquele, quando cai, se lamenta profundamente e prepara planos para superar a queda e, no futuro, ser bem-sucedido, enquanto este, quando cai, se lamenta moderadamente e conscientiza-se da sua falta de confiança em Deus.

5. O homem que se lamenta profundamente é aquele que se orgulha profundamente, que tem uma opinião muito elevada de si mesmo.

6. Na guerra invisível somos todos perdedores, sem exceção. Os únicos que vencem são aqueles que lutam confiando em Deus. Toda vitória é dEle, não sua.

7. A mente tem de se livrar da ignorância da seguinte forma: (a) Implorar em oração para que o Espírito derrame Sua luz divina em nossos corações, (b) procurar sabedoria nos escritos dos homens santos e entender que a vitória não vem das vitorias no mundo, mas das vitorias espirituais. Na calúnia e na difamação está a verdadeira glória, no perdoar os inimigos e fazer-lhes o bem está a verdadeira magnanimidade, no desprezo pelo mundo está a verdadeira força e poder, na obediência voluntaria está a verdadeira coragem e força de espírito, na superação de suas más tendências está o verdadeiro louvor.

8. Não julgue as coisas de maneira imediata, apenas pelas aparências. É necessário certo desapego, certa distância, para em seguida julgar as coisas e situações com a mente.

9. O cultivo da mente implica em não se contentar com a ignorância, mas, por outro lado, também em não a afogar com conhecimento excessivo, ou seja, com meras curiosidades. O orgulho da vontade é visível à mente, que pode esforçar-se em corrigi-lo. Mas o orgulho da mente será visto de que forma? Quem poderá curá-lo? Eis que a mente tem certa proeminência em relação à vontade, e eis que o orgulho da mente é pior que o orgulho da vontade.

10. E como fazer a vontade de Deus e não a sua? (a) Somente com um coração puro é possível discernir quando estamos fazendo a vontade de Deus ou quando, sub-repticiamente, estamos fazendo nossa própria vontade, (b) se você é incapaz, ou sente-se inseguro, de perceber se Deus está movendo as coisas externamente, mas sobretudo internamente, mantenha pelo menos a disposição de tentar perceber Sua vontade e confie nos mais experientes, (c) o homem que faz a vontade de Deus nunca “prefere” uma coisa em relação a outra porque preferir é obviamente introduzir sua vontade na atividade, (d) o homem deve antes buscar agradar a Deus do que escapar do inferno ou ganhar o céu (é melhor dar um pouco de dinheiro a um mendigo para agradar a Deus do que doar uma fortuna para ganhar o céu).

11. Deus mantém os homens vivos a cada momento, a cada instante, todo o tempo. Ele os criou do nada. Honrar Sua grandeza e majestade é uma conclusão óbvia a que todos deveríamos chegar.

12. Há duas vontades no homem: a vontade inteligente superior e a vontade sensorial inferior. O livre arbítrio fundamentalmente inclina-se para uma ou outra, e um dos objetivos supremos da guerra invisível é precisamente não se inclinar pelos ditames da vontade inferior carnal, impetuosa e “apaixonada”. Uma vez que o livre arbítrio se enrede nos ditames da vontade carnal, aí permanecerá como um cabresto mantém um burro de carga sob controle. Para livrar-se dessa vontade inferior dos desejos, a ajuda da graça de Deus é imprescindível. O cristão, que é chamado não apenas para aprimorar-se, mas para aperfeiçoar-se, deve forçar-se a negar esses desejos de maneira total. Isso significa não apenas abandonar os desejos mais enraizados e escravizantes, mas os menores também. O cristão tem de aprender a amar a guerra invisível.

13. Passo a passo para superar os desejos (as paixões da vontade inferior): (a) assim que notar seu surgimento, force-se imediatamente em não as atender, (b) crie um sentimento de raiva contra eles, (c) peça ajuda e força a Cristo, (d) se possível, faça o contrário do que sugere a paixão, (e) cultive uma resolução interior que torne impossível inclinar-se a tais tendências impetuosas como, por exemplo, considerar-se genuinamente digno de todo insulto e assim acolhê-los com alegria.

14. A luta contra as paixões será obviamente reforçada pela oposição do inimigo, que vai tentar te convencer de que a luta é inglória e que a rendição é inevitável. Mas isso é absolutamente falso: “Deus concedeu a nosso arbítrio um poder tão grande que mesmo que todas as faculdades humanas, o mundo inteiro e todos os demônios se unam contra a vontade, não a subjugarão”. Isso significa que não há desculpa, por mais “plausível” que seja, que justifique inclinar-se a nenhum impulso de nenhuma paixão. No entanto, entenda que você é apenas um homem, ou seja, você isoladamente é incapaz de vencer essas batalhas. É necessário reunir em ti a convicção de sua impotência humana para, a partir daí, pedir em oração a ajuda de Deus. Persevere, e a ajuda virá.

15. Para uma guerra rápida e vitoriosa, você deve centrar-se em todas as suas paixões, mas especialmente no amor-próprio, caracterizado pela autoindulgência e pela autopiedade. No entanto, não esqueça que o inimigo está nas mãos de Deus, ou seja, a vitória será retrasada pelo simples motivo de que Deus quer que você lute com todas as suas forças até o fim. Tenha isso claro: não há homem que esteja livre dessa guerra, “seja em vida, seja na morte”.

16. Ao acordar de manhã reze a Oração de Jesus por alguns momentos e ponha-se imediatamente em guarda, sabendo que à sua esquerda está seu inimigo e à sua direita está seu Comandante, o próprio Cristo, e Sua mãe, a Santíssima Virgem, e seus santos e anjos. O inimigo imediatamente ventilará em sua alma impulsos para a autoindulgência e lhe “garantirá” que ceder será melhor e menos custoso. Neste instante invoque a ajuda do Alto e, mesmo que lhe cause dor [combater o ego], insista na labuta espiritual. A vitória, isto é, a coroa que receberá nesta e na próxima vida, virá mediante incessantes batalhas. Retome o que ensinamos no passo 13.

17. Ataque primeiro aquilo que mais lhe perturba, ou seja, o maior obstáculo a seu progresso espiritual. A única exceção é quando algo repentinamente surge no transcurso do dia. Neste caso, ataque estes eventos insurgentes primeiro.

18. Alguns passos para prevenir os ataques súbitos: (a) toda manhã antecipe mentalmente as ocasiões favoráveis e desfavoráveis aos impulsos e irritações, (b) se o impulso surge, procure “descer” imediatamente a seu coração e isole o impulso, (c) se não lograr êxito, não expresse o impulso ou irritação nem por palavras, olhares ou gestos, (d) eleve-se a Deus e procure substituir o mal impulso por um bom impulso, (e) e o mais importante: elimine as causas dos impulsos.

“No trato com as pessoas, você será auxiliado lembrando-se de que elas também são criaturas de Deus, moldadas, assim como você, à imagem e semelhança de Deus e pelas mãos todo-poderosas do Deus vivo; que elas estão redimidas e regeneradas pelo precioso sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo; que elas também são seus irmãos e membros da mesma humanidade, as quais é errado odiá-las nem mesmo em pensamento. [...] Lembre-se especialmente de que, mesmo que supostamente elas sejam dignas de desprezo e hostilidade, se conceder-lhes suas amizade e amor, você estará assemelhando-se a Deus, que ama todas as Suas criaturas e não despreza a nenhuma delas”.

19. Quanto às paixões sexuais: (a) Evite contato com o sexo oposto para combater paixões luxuriosas, (b) preste atenção à ociosidade e à preguiça, observando de perto seus pensamentos, (c) nunca desobedeça a seus mestres e pais espirituais, (d) nunca julgue seu irmão quando cair, mas tome seu exemplo com humildade, (e) não se imagine superior e imune aos ataques do inimigo.

20. A negligência se forma quando formamos o hábito de só fazermos o que gostamos. Fazer o que se gosta leva, em última instância, à paralisia, à inação, à preguiça. Você tem de entender que fazer uma única vontade de Deus, uma simples genuflexão a Seu favor, vale infinitamente mais do que todos os tesouros da terra. Combata a negligência tendo a ciência de que o que quer que faça você enfrentará não muitos, mas apenas um e o mesmo inimigo, e que ele, por mais forte que você que seja, será derrotado porque você confia na ajuda de Deus, que é infinitamente superior a seu inimigo.

21. Evite direcionar seus sentidos externos a esmo, em busca de prazer e satisfação de seus gostos. Uma técnica para não se deixar contaminar pelos sentidos é treinar seu olhar a estar convicto de que, por trás de tudo o que se vê, ouve, cheira, sente etc. está o próprio Deus, que dá ao que quer que seja sua beleza, bondade, verdade, perfeição. É o conteúdo interior das coisas que deve impressioná-lo, não seu aspecto aparente. Lembre-se, você é uma criatura inteligente, não um animal. Encontre nas criaturas seu Criador.

22. Aproveite para ascender a Cristo e Sua história na terra quando ouvir, ver ou sentir coisas que O evoquem. Por exemplo, rochas, mar, pedras, espinhos, martelos, o amor entre Suas criaturas, sol, água, vinho, vestes, murmúrios, dor, aflição, luto etc. etc.

23. Similarmente, a beleza das coisas, o sol, os céus, o cantar dos pássaros, a beleza das pessoas: tudo aponta para o Criador e, mais ainda, tudo isso é palha ante a beleza e o esplendor do Reino de Deus. Evidentemente, estes métodos não precisam ser usados sempre, mas quando necessário. A ideia é que você saiba reunir sua mente e seu coração no Senhor.

24. A virilidade da alma é enfraquecida ao entregar-se a paixões, belezas, texturas, sons prazerosos etc. Guarde seus sentidos para fortalecer sua alma.

25. Acima de tudo, guarde sua língua. O que move a língua é o coração. Os sentimentos que buscam expressar-se em palavras são em sua maioria egóicos porque expressam a lisonja de nosso amor-próprio e nos apresentam, imaginamos, sob a melhor luz. Na maioria dos casos, a loquacidade é sinônimo de conversa vazia. Da conversa vazia vêm as críticas, as calúnias, as fofocas, as sementes da discórdia, a vaidade, o falar com superioridade, o autoelogio disfarçado etc. O silêncio é um dos maiores aliados na guerra invisível. O hábito do silêncio se adquire praticando.

26. Sobre a imaginação. Os objetos sensíveis e os sentidos externos são com carimbos, e a imaginação a marca do carimbo. Mas dado que a imaginação é uma força desprovida de razão e age de maneira puramente mecânica, obedecendo as leis de associação de imagens, enquanto a vida espiritual é a imagem da pura liberdade, concluímos que a atividade da imaginação é incompatível com a vida espiritual. A imaginação é um poder da alma que, por sua própria natureza, é incapaz de adentrar no âmbito da união com Deus. Os Santos Padres ensinam que a imaginação é como uma ponte da qual os demônios se aproveitam para atingir a alma, mesclando-se a ela. Filósofos e pensadores a usam para especular sobre as coisas do Alto, as quais são inacessíveis à imaginação e à fantasia, mas sem antes purificar sua mente das paixões e imagens ilusórias do mundo sensível. O resultado é que ensinam mentiras e não encontram a verdade. Esforce-se em limpar a imaginação de impressões externas mediante a oração e o recolhimento. Quando estiver cansado, desfrute da liberdade em reflexões divinas e contemplações, mas somente aquelas contidas das Escrituras e naquilo que as criaturas de Deus inspirarem; elas são imateriais e, portanto, afins à mente.

27. O cristão deve evitar que os percalços da vida agitem o coração: medos, sofrimentos, tristezas e alegrias repentinas, doenças, ferimentos, mortes de parentes, guerras, incêndios, memórias de pecados e transgressões passadas etc. A ideia é entender que, no que quer que lhe acometa ao cristão, ele tem de inserir esse acontecimento em sua vida espiritual e confiar na Providência. Se algo de bom e positivo lhe acontece, eis uma oportunidade para arrepender-se. Se algo de mal e negativo, eis uma oportunidade para cogitar se são meus pecados que estão me conduzindo a tal situação ou, ainda, Deus está me provando. Não importa o que aconteça ao coração, o homem tem a virtude e a capacidade de suportar o sofrimento e reestabelecer a paz em si mesmo contanto que se submeta a Deus.

28. Se acontecer de você cometer alguma falta pequena, como falar algo grosseiro, perder a calma, um desejo ardente se acender, um pensamento inadequado se formar etc., não se condene ou se julgue. Tal condenação ou julgamento vem, ao contrário do que inicialmente poderíamos supor, de nosso orgulho, de nosso ego. Todos os pecados já foram rasgados na cruz de Jesus Cristo. Estão já perdoados. Portanto, para que desça a graça é necessário fundir o sentimento de culpa com o sentimento de perdão em um só sentimento, aliado à firme decisão de não mais voltar a incorrer nesse pecado. O inimigo vai tentar convencê-lo de que esse exercício de arrependimento pode esperar só mais um pouquinho e, de pouquinho em pouquinho, a visão do pecado torna-se cada vez mais turva até que, com o tempo, o pecado faça parte de seus hábitos e se normalize.

29. O inimigo não tem uma única tática para combater o homem. Ele adota diferentes táticas a depender da situação de cada ser humano.

30. Uma tática muito comum do inimigo é manter o homem em pecado ao dissuadi-lo dos pensamentos que poderiam trazer-lhe à consciência sua vida perniciosa e, agindo assim, lhe aprofunda mais no pecado. No lugar dos pensamentos saudáveis, o inimigo implanta pensamentos insanos. Quanto mais cego, mais insana se tornará a pessoa e, assim, mais perdida.

31. No entanto, àqueles que de alguma forma atingiram a consciência de sua vida insana o inimigo insufla pensamentos de procrastinação (“depois”, “mais tarde” etc.). Lembre-se: o que está nas suas mãos é o hoje, o agora, o neste momento. O amanhã pertence a Deus. Tome a firme decisão de mudar agora, de emendar-se agora. O amanhã poderá distrai-lo mais e a resolução e visão que agora tem poderá perder-se. De novo, a hora é agora. Somente a prática vai fortalecer a visão que tem e a decisão que deve tomar. Adiá-la necessariamente irá enfraquecê-la. Isso vale também para quem leva uma vida decente: a oportunidade de fazer o bem não deve ser deixada escapar.

32. Outra tática do inimigo é “limpar o terreno”, ou seja, é sugerir ao cristão que tem avançado na vida espiritual que ele não precisa de conselhos de fora, de conhecimentos daqueles mais experientes como santos, staretzi (anciãos), homens sábios etc. A ajuda externa seria desnecessária. O novato se entrega a seus próprios conhecimentos e tentativas pessoais.

33. O inimigo também adota a tática de enviar pedras de tropeço e ciladas para que o cristão tropece.

34. Mais uma tática do inimigo é lisonjeá-lo, é sugerir que você está no caminho certo, que você atingiu um grande patamar espiritual etc. Por mais que seja verdade, ou seja, por mais que você tenha realmente crescido espiritualmente, orgulhar-se disso jogará por terra todo seu progresso. A chave para evitar essa sugestão diabólica é fortalecer a convicção de que você é nada. Suas disposições, sua existência, as leis que regem seu corpo, sua alma, sua essência, as pessoas que cuidaram de você, as pessoas cuja união possibilitaram sua existência, enfim, tudo o que há de bom em você tem sua raiz em Deus, no Logos, no Criador. Medite bem e conclua que orgulhar-se de suas conquistas é um ato profundamente falso, profundamente egoísta.

35. Algumas armas a serem usados pelos cristãos na guerra invisível: (a) atacar a paixão que mais lhe prejudica, a que mais lhe causa derrotas, (b) nunca parar, ou seja, nunca abandonar a guerra contra a paixão quando atingir algumas vitorias; a guerra nesta vida termina no fim desta vida, (c) seja sábio e sensato ao atribuir práticas espirituais como jejuns, orações, trabalhos físicos etc.; faça algo que seja desafiador, mas, ao mesmo tempo, que não lhe castigue amargamente, (d) ataque a paixão no momento exato em que surge; o momento da batalha é agora, esqueça o passado e o futuro, a batalha é agora, (e) transforme-se em um inimigo do conforto, do prazer, da autoindulgência, (f) comece sua batalha fazendo uma confissão geral; trata-se não apenas de algo conveniente, mas necessário.

36. Quanto à prática das virtudes, concentre-se em adquirir uma e, com o tempo, outra, e assim por diante; não procure adquirir todas, ou mesmo algumas, de uma vez, mas lembre-se que, uma vez conquistada uma, a seguinte será mais fácil.

37. Atingir uma virtude significa que ao executá-la emprega-se o mesmo esforço e a mesma prontidão que empregava quando você não a executava. Em outras palavras, é como se a virtude passasse a fazer parte de sua natureza, de sua essência. Portanto, de manhã procure prever os momentos em que enfrentará dificuldades ao executá-la e, à noite, relembre os momentos em que foi incapaz de executá-la. Prepara-se antes e revise depois, eis uma estratégia inteligente. E não se esqueça, evidentemente, de pedir ajuda do Alto, sem a qual nada será conquistado: Deus se regozija quando alcançamos uma virtude e, ao mesmo tempo, quando o fazemos pelo simples objetivo de agradá-Lo.

38. O trajeto para a conquista das virtudes apresenta um aspecto diretamente proporcional ao trajeto que percorremos fisicamente. Quanto mais caminhamos, mais nos cansamos. No caminho das virtudes, no entanto, quanto mais avançamos, mais fortes nos tornamos. Isso acontece porque estar forte no mundo espiritual significa ao mesmo tempo estar fraco no mundo sensível. Ademais, a ajuda do Alto deposita-se na parte superior da alma, enquanto a parte inferior, carnal, não recebe nenhuma ajuda.

39. Por isso, uma vez mais, reforçamos a importância de escapar dos prazeres carnais e da luxúria em geral.

40. (a) Quando uma ocasião favorável se apresentar, sempre pratique a virtude. Mesmo em situações menores, praticá-la lhe dará forças quando as situações mais importantes se apresentarem. Não zombe das oportunidades que Deus lhe dá em resposta às suas próprias orações. (b) Lembre-se que, apesar de Deus não desejar seu pecado e das demais pessoas, mesmo eles são permitidos por Ele para nossa admoestação e humildade; aceitemos esse cálice como vindo das próprias mãos de Deus.

41. e 42. (a) O sinal de que estamos praticando a virtude é que a exercemos mesmo em momentos de esfriamento e obscurecimento da alma. (b) Quanto mais fracos forem os impulsos carnais, mais isso quer dizer que progredimos nas virtudes. (c) Quanto mais fácil for o arranque para a prática de uma virtude, tanto mais isso significa que fizemos um bom progresso. (d) Se a mente ascende facilmente a bons pensamentos com pouco ou nenhum esforço, eis outro sinal de progresso espiritual. (e) Idem para a oração, que cumpre-se sem perambular em pensamentos e conjecturas. (f) Quando lágrimas fluírem naturalmente durante um pensamento ou memória, isso também denota progresso espiritual. (g) Quando pensamentos elevados descem ao coração e ali permanecem por tempo prolongado, eis outro sinal de progresso.

43. Querer-se livrar de uma aflição é dar-lhe mais importância do que realmente tem. As aflições têm de ser suportadas com paciência, com confiança em Deus, com humildade. Elas durarão o tempo que tiverem de durar. Querer livrar-se delas é uma questão de orgulho, de petulância.

44. Quando fazemos algum progresso, o inimigo o tentará fazendo-lhe acreditar que está próximo da perfeição e, assim, que você deveria exercer ainda mais esforço físico e mental para atingi-la. Isso acabará lhe atirando no abismo. As mortificações são em geral uma tentação e uma perdição para os homens. Busque fazer aquilo que é proporcional às suas condições morais. Não imite os santos externamente, mas os imite nas disposições da alma e do espírito.

45. O amor-próprio engendra o vício do julgamento alheio. O problema é que o julgamento alheio não apenas se funda no orgulho, mas o alimenta, que retroativamente alimenta o julgamento alheio. O inimigo se aproveita desse fenômeno e abre nossos olhos. Sim, ele abre nossos olhos, mas não àquilo que fazemos e dizemos, mas àquilo que os outros fazem e dizem. Prestamos especial atenção aos gestos, palavras, posturas e ações alheias com o objetivo de encontrar defeitos e, assim, julgar e condenar o próximo. Para superar esse vício, (1) repila o pensamento de julgamento imediatamente, lembrando-se das boas qualidades do próximo, (2) lembre-se de seus próprio defeitos e falhas (“cura-te a ti mesmo” (Lucas 4:23), “tira primeiro a trave do teu olho” (Mateus 7:5)), (3) lembre-se que quando julgamos severamente alguém isso significa que uma pequena raiz da mesma maldade existe no seu coração, e que é essa mesma raiz no coração que permite que você faça suposições sobre os outros e os condene.

46. O que é necessário para que a oração surta seu pleno poder? (1) Manter sempre vivo a intenção de servir a Deus em tudo o que fizer. (2) Manter viva a fé de que Deus quer conceder-lhe tudo o que é necessário para servi-Lo corretamente. (3) Manter viva a intenção de fazer a vontade de Deus, e não reduzir a vontade de Deus à sua vontade. Nossa vontade está sempre contaminada em maior ou menor grau com o amor-próprio, o que a torna suspeita. Se genuinamente não souber qual é a vontade de Deus, peça para Ele lhe esclareça. E não se esqueça que as virtudes são agradáveis a Deus, mas elas devem ser exercidas com o intuito de agradá-Lo e servi-Lo, e não motivos espúrios quaisquer. (4) A oração por virtudes tem de ser feita concomitantemente com esforços genuínos de sua parte para exercê-las, sob pena de tentar a Deus. Rezar de maneira negligente, ou pedir a um santo que lhe ajude sem que você mesmo “se ajude”, é hipocrisia. (5) Combinar na oração os 4 elementos básicos ensinados por São Basílio, o Grande: (a) glorifique a Deus, (b) dê graças a Ele pelas bênçãos e misericórdias que lhe concede, (c) confesse suas faltas e transgressões, (d) peça-Lhe o que necessita, especialmente do que necessita para sua salvação. (6) Mantenha viva a confiança da generosidade imensurável de Deus, mas também em Jesus Cristo. E não se esqueça de pedir ajuda à Mãe de Deus, aos anjos, santos, pastores, mestres, ao anjo da guarda, ao seu santo padroeiro etc. (7) Rezar com incansável entusiasmo e diligência, ou seja, não esperar que o que pede venha em curto prazo. Mantenha viva em seu coração a fé em Sua ajuda. Mesmo que não receba o que pediu, não procure entender o porquê, mas entenda que poderá receber algo diferente do que pediu ou, mesmo que não receba absolutamente nada, lembre-se de sua própria indignidade.

47. Quanto à oração mental, ou oração interior, trata-se da oração feita com a mante (noûs) em silêncio no coração. É como reunir, ou efetivamente “recordar”, a oração no coração. A ideia é que o coração sinta (“se afete”) por aquilo que é rezado. Há ainda a oração perfeita, que é a oração rezada pelo Espírito Santo no coração do fiel cristão.

48. Rezar com o livro de orações é não apenas útil, mas necessário. No entanto, é comum que a mente divague enquanto rezemos. A oração torna-se algo mecânico, frio. A ideia é combinar mente e coração em uma e mesma direção. Para isso: (1) Reflita ao longo do dia sobre a oração, mas não no momento da própria oração. Relembre sua importância, seu objetivo, seu mérito, seu propósito. Dessa forma, no momento de rezar, será mais fácil que a mente se concentre na oração e o coração responda afetivamente a ela. (2) Decore a oração para que a mente mais facilmente possa se concentrar-se nela, e não se lembrar dela. (3) Não se entregue à leitura das orações sem antes se preparar para ela. A mente tem de estar calma, livre de preocupações, aflições, perigos etc. (4) Lembre-se que orar significa colocar-se diante de Deus. (5) Leia as orações com atenção, com a mente no coração. Se a mente divagar, volte a leitura ao ponto onde a mente começou a divagar. (6) Se durante a oração surgir de repente algum tema que lhe chame a atenção e sobre o qual necessita orar, pare a leitura de orações e reze sobre o tema que lhe surgiu até que se encontre satisfeito. (7) Quando tenha terminado suas orações, não pense que a mente pode livremente divagar no resto do dia e esquecer-se do Alto. Lembre-se que a mente sempre tem de preservar um “estado de oração” e não se esqueça que Deus está sempre presente em todos os lugares. (8) A oração tem de ser feita completa e sem interrupções, diariamente. Se um dia você reza bem e no outro não, e essa oscilação se torna um hábito, nunca a oração se estabelecerá e seus frutos não serão colhidos.

49. A vida de oração deve começar pela memorização das orações do livro de orações. Quando se enxertarem, então aprenderemos a rezar de maneira pessoal, ou seja, o coração aprenderá a rezar adequadamente. Não tente rezar por sua própria conta sem que o coração sinta um impulso e uma necessidade reais. Por regra geral, as orações espontâneas são egoístas, orgulhosas, petulantes.

50. Escolha uma oração curta para ser rezada ao longo do dia e habituar sua mente e seu coração a rezá-la. Recitar uma oração curta é o ideal, mas de qualquer forma o objetivo aqui é manter a atenção viva na lembrança de Deus.

51. A Oração de Jesus deve ser rezada não apenas com palavras, mas com a mente e o coração. Seu conteúdo tem de ser sentido, repercutido, no coração. Com o tempo e muita prática, as palavras desaparecem e apenas o movimento da mente (noûs) e do coração permanecem. (1) Reserve em sua regra de oração um tempo para a Oração de Jesus. (2) Aumente a quantidade de orações na medida em que desfrutar dela. (3) Não a recite de maneira atabalhoada, mas com atenção, lembrando sempre que o coração tem de repercutir seu conteúdo. (4) Insira a oração nos intervalos de seu dia, sempre que possível. (5) Acrescente uma reverência a cada recitação. Essa prática fortalece o poder da oração e seus frutos. (6) Leia a Philokalia, especialmente São Simeão, o Novo Teólogo, São Gregório do Sinai, São Nicéforo, São Calixto e Santo Ignácio. (7) Ao rezá-la concentre-se na parte no coração físico, ou seja, na porção logo acima do mamilo esquerdo. Se uma sensação dolorida surgir, mova a atenção para a parte superior do peito. (8) Tenha um pai espiritual experiente. Não aceite as insinuações do inimigo de que você alcançou a oração mental. (9) Não estabeleça uma meta temporal para alcançar esta oração. Isso levará muito, muito tempo. Não tente controlar o progresso, ele não está sob seu alcance.

52. Mais orientações para rezar. (1) Coma, durma e descanse com moderação. Não se entregue a comidas e bebidas de acordo com os impulsos e desejos imediatos. Não dê trégua à carne. (2) Reduza o contato com o mundo exterior o mais que possível. Quando a oração se estabelecer, você saberá o que pode ser acrescentado em termos de contato exterior. (3) Leia livros espirituais e adequados à sua condição. Vá a igreja quando puder porque simplesmente estar ali já sugere um clima de oração. (4) O progresso na vida espiritual exige progresso na vida cristã. Purifique-se mediante a confissão regular. (5) Não omita nenhum tipo de oração, sejam as orações do livro de orações, sejam as orações livres, sejam os breves apelos a Deus, seja a Oração de Jesus.

53. A oração é uma arma invencível na guerra invisível apenas quando tiver se estabelecido incessantemente no coração. Neste ponto, o coração torna-se impenetrável pelo inimigo. No entanto, até que isso aconteça, a oração mesmo assim não apenas é valiosa, como é a arma mais importante na guerra invisível. Assim que uma imagem se formar na alma, seja de alguém que lhe fez mal, ou de alguma mulher bonita, ou de bens, roupas, o que seja, resista recorrendo à oração e, em geral, à Oração de Jesus.

Fonte: Lorenzo Scupoli, editado por São Nicodemos, o Hagiorita, e revisado por São Teófano, o Recluso, Unseen Warfare, St. Vladimir’s Seminary Press, Crestwood, NY, EUA, 1997.

23 de fevereiro de 2024

O papel dos logoi nas artes sacras


O principal objetivo da obra de Philip Sherrard foi opor-se ao dualismo metafísico, cosmológico e antropológico. Este tipo de dualismo acabou se automatizando em uma espécie de "estado de espírito geral", e está, segundo Sherrard, na base do fracasso espiritual do mundo moderno. Não sendo uma mera “opção filosófica”, o pensamento dualista funciona como uma patologia da (auto)percepção do mundo. Ele molda a forma como olhamos aos nossos semelhantes, e ao mundo material que nos rodeia, e os tornam recursos a serem explorados a fim de satisfazerem nossas necessidades egoístas. Na raiz da crise do mundo moderno encontra-se um erro no olhar epistêmico do mundo: a ilusão de adquirir conhecimento sem referência ao fundamento metafísico das próprias coisas que contemplamos, que é a única instância que pode realmente investir essas coisas com realidade e, em última instância, com sentido. Assim, um objeto físico não pode por si só legitimar sua existência e seu sentido: não pode haver nenhuma física separada da metafísica, e, sem seu fundamento metafísico (das Ding an Sich), toda a física é uma ilusão epistêmica e ontológica. O homem não pode por si só conferir realidade às coisas exteriores; eis o dilema do evolucionismo.

O conhecimento da natureza é também uma ilusão, que passou a ser dogmatizada pela ciência moderna com o seu imperativo de renunciar a qualquer teoria metafísica; esta renúncia não pode basear-se senão numa mentira, pois a própria existência humana aponta para a esfera metafísica e não pode ser concebida fora dela. A “ciência” moderna também está errada porque postula dois aspectos diferentes do objeto sob sua investigação: um físico, que daria fundamento a um conhecimento acessível a todos os homens dotados de sã consciência, e outro metafísico, cujo conhecimento é supostamente subjetivo e, portanto falso para aqueles que não compartilham da mesma visão. O paradigma do conhecimento universalmente aceitável é, portanto, a matemática, que por sua vez não pode dar fundamento metafísico ao mundo físico, mas que acaba por quantificar o cosmos. Até mesmo Deus, privado de sua relevância metafísica, torna-se o “Grande Matemático”. Assim, tudo, mesmo Deus, é reduzido a mera quantidade, como argumentou anteriormente René Guénon. Se o papel de Deus no mundo for reduzido ao mero ofício de um relojoeiro, o próprio cosmos torna-se um mecanismo gigantesco, que não necessita mais da intervenção do seu próprio Criador, podendo funcionar independentemente dele, e de acordo com “suas próprias” leis mecânicas. Esta ideia está, segundo Sherrard, na base da crise ecológica moderna.

De acordo com Sherrard, existem dois modos opostos de consciência humana: a “consciência utilitarista do ego”, um termo que possivelmente sugere a teoria patrística de que todo mal humano tem sua raiz no “amor-próprio” (philautia) e uma “consciência espiritual”, também chamada de “consciência angélica”. Seus correspondentes órgãos de conhecimento seriam, portanto, a razão discursiva e o intelecto. Este duplo conhecimento representa, no entanto, um condicionamento cultural infundido por dinâmicas específicas na história da cultura ocidental. A responsabilidade por esta divisão epistêmica e (portanto) por este fracasso é, segundo Sherrard, da teoria medieval da dupla verdade, que põe em movimento a autonomização da racionalidade contra a fé e contra a metafísica.

Segundo Sherrard não existe natureza (physis) à parte de Deus, ou seja, não é possível conceber um lugar em que a natureza seja autônoma e separada de Deus. Assim, não pode existir sagrado e profano (e, portanto, nenhum sagrado oculto no profano, como pensava Mircea Eliade), mas apenas diferentes níveis ontológicos de ser, natureza e homem, que portam em diferentes graus a sacralidade imutável do divino. Para Sherrard não há lugar filosófico para a teoria da criação a partir do nada (ex nihilo), exceto no caso em que “nada” seja apenas outro nome (apofático) para o próprio Deus.

Sherrard não teme em usar a noção de panenteísmo para expressar a ideia de que toda a criação está acontecendo em Deus, está em Deus. Segundo ele, esta é a intuição fundamental da pregação de São Paulo no Areópago, quando citou as palavras do antigo poeta Arato (Atos 17:28), bem como em sua epístola aos romanos (Romanos 3:36). Esta visão de São Paulo foi assumida pelos primeiros autores cristãos, que tentaram uma síntese de sua fé (São Justino, o Mártir, Santo Irineu de Lyon, Orígenes), e mais tarde por São Máximo, o Confessor, em seu ensinamento sobre os logoi divinos da criação.

O mistério da criação é evidente, segundo Sherrard, na relação entre a doutrina da Trindade, da criação e da Encarnação, formando uma visão teológica "teoantropocósmica". O Logos divino, que é o Filho de Deus e, ao mesmo tempo, o Filho do Homem, é o mesmo no ato da criação e na sua encarnação. Ele é desde a eternidade e na eternidade o mesmo Cristo cósmico (Deus-homem e Deus-criatura), e a natureza é o próprio Corpo de Cristo, antes mesmo do próprio ato de criação, porque a geração eterna do Logos e a criação são o mesmo ato divino, único e eterno, sem que isso implique que o mundo existiria desde a eternidade, mas levando-se em conta o eterno Plano/Pensamento divino do Deus Tri-Uno. Além disso, o ato da criação não deve ser atribuído à vontade de Deus, como se Deus pudesse ter decidido não criar o mundo, mas deve ser entendido como uma expressão da natureza amorosa de Deus: assim como Deus não pode deixar de amar (!), da mesma forma Ele não pode não ter criado o mundo. Como expressão da sua própria natureza divina, a criação é um nível eterno da autoconsciência do próprio Deus, da sua própria revelação para si mesmo, manifestada em diferentes níveis de autorrevelação. Há neste ponto alguns acentos que aproximam as especulações metafísicas de Sherrard das de René Guénon, especialmente na equivalência entre ser e conhecer, bem como na conceptualização dos diferentes níveis do ser.

De volta ao processo intradivino de desvelamento do ser, Sherrard propõe distinguir entre várias “fases”, correspondendo a diferentes níveis de diferenciações internas do divino. A primeira corresponde à atualização das potências divinas de Deus Pai em seu Logos, no sentido de este se tornar imagem (ícone) do Pai. Essas potências são identificadas com os nomes de Deus, que por sua vez são individualizados em diferentes formas, como logoi divinos ou “imagens-arquétipos” do mundo criado. Esses logoi também representam a realidade divina de cada coisa criada. Estas considerações levarão Sherrard a argumentar em termos sofiológicos a favor da sacralidade da natureza.

A doutrina dos logoi é fundamentada patristicamente nos escritos de São Máximo, o Confessor, mas Sherrard modifica e expande sua visão para muito além do domínio estritamente cosmológico, privilegiado por Máximo, para o domínio dos processos intradivinos. Sherrard minimiza ainda mais o acento cristocêntrico de São Máximo, embora declare a definição cristológica do Concílio de Calcedônia (451 d.C.) como o único modelo real que conceitualiza as várias encarnações dos logoi divinos no cosmos e no homem.

Além disso, as glosas trinitárias de Sherrard relativas aos processos intradivinos de individuação e diferenciação também não são muito consistentes com a noção cristã da Trindade. Por exemplo, mesmo que o Logos desempenhe um papel central na sua exposição, há pouca menção ao papel do Espírito Santo, apesar da relevância teológica da pneumatologia para uma doutrina da criação. Surpreendentemente, outro ponto vital da doutrina ortodoxa, que não é levado em consideração, além de algumas breves declarações, é a doutrina das energias incriadas de Deus.

Philip Sherrard não almejava, de fato, a uma formulação rigorosa da doutrina patrística dos logoi divinos, mas tentava adaptar alguns impulsos patrísticos às suas opiniões pessoais, a saber, a função semelhante à dos logoi das “imagens-arquétipos” e seu papel no processo estético.

A realidade arquetípica dos logoi divinos, como uma espécie de “ponteiro metafísico” imediato de cada coisa visível, é entendida por Sherrard nos termos daquilo que o francês Henri Corbin referiu como mundus imaginalis. Esta expressão é uma tradução do árabe ˁālam al-mithāl (ءالم المثال) nos escritos do místico sunita Ibn ʿArabī (1165-1240) ou do xiita Suhrawardī (1154-1191), termo este usado para designar a realidade ontológica do coisas reveladas, um mesocosmos de imagens e, fenomenologicamente falando, o próprio “lugar” dos acontecimentos proféticos e angélicos da história da salvação. Para aceder a este nível ontológico, os homens são dotados de um órgão sensorial especial – a imaginação –, mas que não deve ser entendida em termos puramente psicológicos, ou seja, como sendo mera “fantasia” e, portanto, mera “ilusão”. As implicações epistêmicas desta noção já são evidentes no trabalho do próprio Corbin, que via o papel deste termo como um manifesto anticartesiano concreto e parte de uma hermenêutica antimoderna.

As maneiras pelas quais Philip Sherrard concebe a identificação das imagens-arquétipos com este mundus imaginalis nunca são explicitamente detalhadas, exceto por algumas escassas referências, mas fica claro em seus escritos que Sherrard pretendia com isso articular alguns contornos fundamentais de uma teoria estética. Assim, já na sua tese de doutorado sobre a poesia grega moderna, Sherrard refere-se ao mundo dos arquétipos como a fonte de inspiração poética por excelência. Nesses seus primeiros escritos, as referências concretas ainda eram apenas a Platão, mas já então a própria possibilidade da arte era descrita em termos do acesso do artista ao mundo dos arquétipos. Para Sherrard, os arquétipos nada tinham a ver com o domínio psicológico e individual da mente humana, e vem daí sua acirrada polêmica com C. G. Jung. Mesmo seu próprio impacto estético original, que está na base da sua conversão à Ortodoxia, é interpretado retrospectivamente por Sherrard como tendo sido uma intuição da realidade ontológica dos arquétipos, como parte da outra mente (greco-bizantina) da Europa. Para este conteúdo filosófico platônico dos arquétipos, o Cristianismo Oriental contribuiria com seu próprio sentido da intuição do próprio Logos oculto na matéria/criação.

Sherrard raramente menciona de que tipo de arte está falando: para ele só pode haver arte sacra, arte que se abre à infusão do reino transcendente. Não só a arte é sacra por definição, mas também outras instâncias como a natureza, a vida, o homem, na medida em que também se abrem e testemunham o transcendente, através do seu logos divino interior. Consequentemente, se entre o divino e a criação existe uma relação simbiótica, então todo o cosmos é apenas um gigantesco sacramento e, de acordo com o princípio da homogeneidade sacramental da natureza, não existe o profano.

No entanto, uma sensação de desconforto acompanha esta visão luminosa da dignidade da natureza: a consciência de que vivemos num mundo caído e de que a natureza sacramental do mundo criado está apenas potencialmente ativa, mesmo que seja em menor grau. Ainda mais do que uma mera potência, o mundo como sacramento designa a realidade numenal das coisas percebidas (as “coisas em si”), bem como o seu telos divino, temporariamente ofuscado pelo pecado. O papel da arte sacra é dar expressão ao mundo divino e inteligível, que está logo atrás das coisas perceptíveis e que representa a própria razão (logos) de sua existência, bem como seu sentido. Isto é possível porque o mundo perceptível é imagem e ícone do inteligível, cópia dos arquétipos divinos.

Esta qualidade icônica da criação é em si uma legitimação da iconografia enquanto arte sacra cristã, dado que o ícone pintado é capaz de representar o mundo tal como ele é em si, na sua dimensão numenal, ou seja, na forma como o próprio Deus o vê. O aspecto numênico da realidade além das coisas quantificáveis do mundo (caído) torna-se visível através da arte sacra do ícone, num processo de desfenomenização do mundo, no qual ele é percebido não como aparece, mas como realmente é. Sherrard arrisca-se mesmo a dizer que, como representações dos arquétipos divinos da criação, os ícones tornam visíveis vários níveis do próprio ser divino, tal como se manifesta nesses arquétipos, e até tornam possíveis várias "encarnações dos arquétipos".

A forma do ícone não pode assim ser historicizada, como mera expressão de uma moda artística (passageira) num determinado tempo e lugar, mas é imposta pelo próprio arquétipo divino à medida que se revela ao artista, que se torna assim ao mesmo tempo um vidente das coisas divinas (um místico) e um profeta. Assim, a originalidade do ícone nada tem a ver com a descoberta de novos modos de expressão artística, mas é apenas determinada pela sua relação com a sua origem (divina).

A arte sacra pressupõe a contemplação das realidades invisíveis e inteligíveis, das razões divinas (logoi) da criação, o que equivale a uma experiência direta do próprio Deus. Sendo uma expressão da contemplação espiritual, o ícone é também uma ferramenta na contemplação de Deus. A própria contemplação só é perfeita quando o conhecedor ou o pintor se identifica com o conhecido, que é Deus, ou seu aspecto divino (arquétipo) responsável por inspirar o ícone pintado, e para isso o pintor deve renunciar e negar a si mesmo, porque sua individualidade pessoal pode ofuscar a revelação do arquétipo divino. É por isso que o iconógrafo não deve autografar seu ícone, como testemunho do fato de não ter deixado sua própria individualidade tornar-se o espaço no qual o arquétipo divino pode manifestar-se plenamente. A vocação do artista é tornar-se um hierofante, ou mesmo tornar-se ele próprio um sacramento vivo, um testemunho da revelação contínua de Deus no mundo percebido. Na verdade, tal vocação do artista dirige-se a todos os seres humanos: todos somos convocados a tornar-nos ícones vivos do grande mestre da pintura, que é Deus, como Ele mesmo planejou e ordenou que fôssemos.

Fonte: Ionuţ Daniel Băncilă, trechos do capítulo Philip Sherrard's Orthodox Esotericism da obra Meeting God in the Other, LIT Verlag, Münster, Alemanha, 2020.

19 de fevereiro de 2024

Cinco provas da existência de Deus


O filósofo americano Edward Feser apresenta 5 provas da existência de Deus apelidando-as de acordo com o filósofo que melhor as representa. Isso não significa que estes filósofos tenham efetivamente desenvolvido as provas nos moldes que Feser as apresenta, mas são os filósofos que, digamos, inspiraram Feser a desenvolvê-las.

1. Prova aristotélica (ou: A existência só pode vir do Ato Puro)

Aristóteles ensinava que toda mudança é a atualização de uma potência. Então, por exemplo, quando um café esfria ele atualiza a frieza que tem em potência. Observe, no entanto, que essa frieza, embora esteja em potência, já é algo. Em outras palavras, a frieza não é exatamente “nada”.

Mas a passagem da potência para o ato não explica a mudança. Por que a potência se atualizaria? Por que as coisas não se mantêm como estão, sem mudanças, sem alterações? Ora, a mudança exige um “mudador”. E mais: esse “mudador” precisa ele mesmo ser atual. No caso do café poderia ser um cubo de gelo, a frieza do ambiente etc. No entanto, se o “mudador” está ele mesmo experimentando mudança, então é necessário, por conseguinte, que haja outro “mudador”. E assim, linearmente (ou seja, temporalmente). Isso, no entanto, não significa que seja necessário um primeiro “mudador” num passado remotíssimo.

No entanto, a ideia de mudança linear nos ajuda a vislumbrar outro tipo de mudança: a mudança hierárquica. Ora, a xicara de café exige que a mesa a sustente, que por sua vez exige que o chão a sustente, que por sua vez exige que a Terra a sustente etc. Isso tudo simultaneamente. Aqui não constatamos a mudança tal como a constatamos no caso da mudança linear, mas a atualização de potências não nos permite negar que há, sim, uma mudança: a xícara tem a potência de estar a um metro do chão que é atualizada pela mesa, e assim sucessivamente. Há uma relação de dependência entre ao membros. A mesa, o chão, a Terra etc. não têm o poder para sustentar nada a não ser que derivem esse poder de algo. Eles são, digamos, meros instrumentos. E aqui uma observação crucial: enquanto a mudança linear não requer um primeiro membro, a mudança hierárquica sim o requer. Ora, se um dos elementos da série hierárquica não cumpre seu “papel”, a xícara deixa de atualizar sua potência de estar a um metro do chão.

O primeiro membro da série hierárquica não precisa ser primeiro no sentido que venha antes do segundo, do terceiro etc., mas primeiro no sentido de que tem poder causal inerente ou incorporado, enquanto os demais têm poder meramente derivatrivo.

Entretanto, a série linear tem de pressupor que haja uma hierarquia. Me refiro à própria existência dos elementos. O que faz com que a xícara de café não apenas esteja onde está, mas que continue a existir? O que sustenta a existência da xícara? Poderíamos apelar à estrutura atômica da xícara, às partículas subatômicas etc., mas isso apenas esconderia a pergunta debaixo do tapete. O que sustenta a existência das partículas subatômicas? Por que elas se atualizam como se atualizam e não de outra forma? O que lhes dá existência às potências que elas têm? Tem de haver um primeiro membro a tudo isso que não seja ele mesmo uma potência, mas um atualizador não atualizado. Um puro ato ou, como diria Aristóteles, um motor imóvel.

É notória a semelhança desta prova com a prova apresentada por Mortimer J. Adler.

2. Prova plotiniana (ou: O composto só pode vir do Uno)

As coisas de nossa experiência são compostas de partes. Um composto depende fundamentalmente (atemporalmente) de suas partes. Uma cadeira depende da existência, em todo e qualquer momento, da adequada disposição de suas partes para existir.

A exemplo do raciocínio que empreendemos na prova aristotélica, a cadeira deve ter sido construída por alguém no passado e assim sucessivamente. É uma série causal linear. Mas todos os elementos que agora, neste instante, compõem a cadeira precisam existir agora, neste instante. Trata-se de uma série causal hierárquica. Aqui pouco importam os princípios metafísicos de forma-matéria ou essência-existência. O que importa é que todo composto tem uma causa que o mantém composto que, por sua vez, é também composta. Novamente, uma primeira causa faz-se necessária para explicar os compostos, mas que seja ela mesma simples, sem partes, nem materiais, nem metafísicas. É o que o filósofo neoplatônico Plotino chamava de Uno.

3. Prova agostiniana (ou: Os objetos abstratos têm de existir num Intelecto)

Os objetos abstratos (universais, proposições, números, objetos matemáticos, mundos possíveis) existem de alguma forma. Eles não existem totalmente independentes do mundo (como o mundo das ideias de Platão) nem totalmente imanentes ao mundo (como no hilomorfismo aristotélico). Feser evidentemente descarta as alternativas nominalista – que nega a realidade dos objetos abstratos – e conceitualista – que admite sua realidade enquanto objetos construídos única e exclusivamente pela mente humana.

A solução é o que Feser chamar de “realismo escolástico”, que nada mais é do que o realismo aristotélico com um “acabamento” platônico. O “terceiro reino” platônico, embora incoerente, serve de inspiração para localizar o reino dos objetos abstratos fora da mente humana e do mundo material. Em concreto, adotando uma famosa tese atribuída a Santo Agostinho, Feser sustenta que tais objetos existem em um intelecto infinito, eterno e divino. O realismo escolástico é um compromisso aceitável, que evita os erros realistas de Platão e Aristóteles. Esses objetos têm de existir no Intelecto divino.

4. Prova tomista (ou: A existência tem de vir da Existência)

O mundo está povoado por uma enorme quantidade de coisas. Apesar da miríade de coisas que há no mundo, sabemos duas coisas distintas a respeito delas: sabemos o que são (a natureza/essência das coisas) e sabemos que são (a existência das coisas). O homem ser um animal racional é saber sua natureza/essência, e que realmente haja homens é saber que existem.

Há vários motivos para defendermos a distinção entre essência e existência. O primeiro motivo foi apresentado por Feser em seu Scholastic Metaphysics. Procure sua explicação sobre a existência de leões, dinossauros e unicórnios. O segundo motivo tem a ver com a contingência das coisas. Elas existem, mas poderiam não ter existido. Se sua existência não fosse distinta de suas essências então, por sua própria essência teriam de existir, ou seja, seriam necessárias, o que é absurdo. O terceiro motivo é que seria impossível que houvesse mais de uma coisa cuja essência contivesse a existência. Ora, se há algo cuja essência não seja distinta da existência então nessa coisa essência e existência são idênticas. Sua essência seria simplesmente sua existência. Essa seria a única coisa realmente existente. Todas as demais não poderiam existir, dado que essência e existência supostamente são idênticas, o que é absurdo.

Portanto, se algo existe então a fonte de sua existência tem de vir de fora. Mas essa existência não se aplica somente quando a coisa começa a existir, mas depois que ela existe e enquanto ela existir. Essa fonte da existência não pode ser ela mesma contingente, mas algo que seja a própria existência. Algo que, nas palavras de Tomás de Aquino, seja “a própria existência subsistente”.

5. A prova leibniziana (ou: Tem de existir um ser necessário)

Trata-se do princípio de razão suficiente. É a ideia de que para tudo há uma explicação para sua existência, para os atributos que apresenta, para a situação em que se encontra. É um princípio difícil de explicar não por ser complexo, mas, ao contrário, por ser demasiado óbvio para que se diga algo a favor ou contra. A própria confiança que depositamos em nossa percepção sensível e nas ciências empíricas nos impede de negar o princípio de razão suficiente. Negar o princípio da razão suficiente é minar a possibilidade de toda e qualquer indagação racional.

Não confundamos a causalidade com o princípio de razão suficiente. Feser relembra o exemplo dado pelo próprio Leibniz. Imagine uma série infinita de livros de geometria sendo que cada um deles foi copiado do anterior. Sabemos a causa imediata de cada livro, mas obviamente não explicamos tudo. Por que livros de geometria? Por que não outros livros? Por que não outros objetos? A mera relação causal não explica uma outra relação que não é exatamente causal, mas existencial.

Não há como evitar a conclusão de que para que exista uma série de seres contingentes tem de haver algo que seja necessário, cuja existência não seja explicada por nada mais.

Fonte: Edward Feser, Cinco pruebas de la existencia de Dios, Ediciones Cor Iesu, Toledo, Espanha, 2021.

11 de fevereiro de 2024

Marte vs. Vênus


A origem dos conflitos entre homens e mulheres está sobretudo na ideia subjacente de que as mulheres deveriam se comportar como homens e, vice-versa, que os homens deveriam se comportar como mulheres. O amor entre ambos só poderá voltar a desabrochar se começarem a entender, e aceitar, que homens e mulheres sentem, pensam e agem de maneiras diferentes.

A mulher quando compartilha seus sentimentos busca empatia por parte do homem, mas o homem, ignorando como pensam as mulheres, pensa que a mulher quer uma solução para os conflitos e problemas que está expondo. Os homens valorizam o poder, a competência, a eficiência e a realização. Os homens em geral fazem coisas para se aprimorarem e ganharem conhecimento e habilidades. O sentido de vida masculino é produzir resultados. As mulheres se voltam mais para pessoas e sentimentos, enquanto os homens se voltam mais para objetos e coisas.

Para os homens, atingir metas e produzir resultados são importantes porque é a maneira masculina de provar seu valor, sua dignidade. Mas para atingir essas metas e produzir esses resultados os homens têm de fazer isso sozinhos. Quando um homem recebe um conselho que não pediu ele presume que a mulher entende que ele, o homem, é incapaz de fazer algo por si mesmo. Pedir ajuda, para um homem, é sinal de fraqueza. É por isso que os homens oferecem soluções para as mulheres: eles entendem que elas, sendo “homens”, ao exporem seus sentimentos e dramas pessoais, estão pedindo ajuda. Não é isso que elas querem. Conversar sobre problemas, para uma mulher, não é pedir soluções.

Para as mulheres, a comunicação, a beleza e os relacionamentos são importantes porque é por meio deles que elas se amparam e se ajudam mutuamente. O sentido de vida feminino é criar relacionamentos. A satisfação feminina vem do compartilhar e se relacionar com os outros. Para uma mulher, muito mais importante do que cumprir metas ou alcançar resultados é expressar sua bondade, seu amor e sua atenção. Quando uma mulher conversa, ela busca aproximação e não necessariamente uma solução.

Quando um homem enfrenta algum problema ao qual não tem solução é comum que se retire para sua “caverna”. Em outras palavras, o homem reduz sua comunicação ao mínimo necessário até que em seu mundo mental ele consiga vislumbrar uma solução, ou pelo menos uma linha de ação, para o problema. Portanto, quando um homem está nessa caverna é irracional exigir que ele saia e se comporte como antes de entrar. Seria igualmente irracional pedir que uma mulher aborrecida seja calma e razoável.

Os homens ficam motivados e fortalecidos quando se sentem necessários. Quando o homem sente que não faz diferença na vida da mulher será difícil para ele se importar com a vida e os relacionamentos da mulher. É difícil ficar motivado quando ele não é necessário.

As mulheres ficam motivadas e fortalecidas quando se sentem acalentadas. Quando a mulher sente que o homem não se importa com seus sentimentos e relacionamentos será difícil para ela se sentir feliz. É difícil se sentir feliz quando ela está sozinha.

Os homens precisam entender que o espírito competitivo, ou seja, o espírito de que eu ganho enquanto você perde, tem seu lugar em diversos aspectos da vida cotidiana. No entanto, o espírito competitivo não pode prevalecer no relacionamento com uma mulher. Por mais piegas que possa parecer, num relacionamento é necessário que ambos vençam.

De maneira geral, quando as mulheres entram na vida adulta se dão conta do quanto ela pode desistir de si mesma para agradar um homem. Por outro lado, quando os homens entram na vida adulta se dão conta do quanto podem servir e respeitar mais uma mulher. Isso significa que quando uma mulher se doa demais a culpa não é do homem. Similarmente, quando um homem se dedica pouco a culpa não é da mulher. Ambas as posturas são uma espécie de tendência natural de cada sexo. As mulheres em especial precisam estar atentas ao que podem dar sem se ressentirem. O ressentimento mais tarde funcionará como um efeito rebote: ela dará menos porque entenderá que o homem não dá o mesmo em troca.

Os homens têm de entender que para as mulheres não é fácil receber. Para elas, receber é sinal de que podem transmitir a mensagem de que são muito dependentes, e isso lhes desperta uma grande culpa. Em geral, as mulheres nutrem a ideia, desde a infância, de que não merecem a ajuda que recebem, e por isso frequentemente a negam. Elas podem desenvolver a ideia de que são “menos” do que os homens e, assim, terem medo de aceitar, muito menos pedir, ajuda. Os homens, por sua vez, se sentem frustrados e desmotivados quando têm sua ajuda rejeitada. Um curioso, e destrutivo, ciclo se forma aí. Precisar dos outros coloca a mulher em uma posição vulnerável.

Os homens têm medo de que não sejam bom o suficiente. Em geral compensam esse medo se esforçando para serem ainda melhores e mais competentes. Se as mulheres têm medo de receber – porque isso lhes traz a sensação de que são um fardo para os homens –, os homens têm medo de dar – porque isso lhes traz a sensação de que correm o risco de falhar com as mulheres. Os homens têm de entender que quando fracassam isso não significa que eles sejam um fracasso. O homem quer ser o herói da mulher e, nessa ânsia, não a ouve.

Ademais, e por consequência das diferenças fundamentais entre homens e mulheres expostas acima, as mulheres tendem a se expressar de maneira hiperbólica, generalista e, digamos logo, exagerada. Quando uma mulher diz a um homem que “você só pensa em você”, isso não significa que realmente pense assim, mas significa simplesmente que ela sente tal intensidade no momento exato em que está falando. Esse uso de figuras de linguagem confunde os homens que, de maneira geral, tendem a ser mais precisos com as palavras e as acabam tomando literalmente.

Muitas mulheres adotam uma estratégia bastante disseminada – e bastante errônea – para conseguir o que querem de um homem: criticar e dar conselhos sem que tenham sido pedidos. É a ideia de que o homem “tem que mudar”. A “mudança” não apenas não virá como o problema original tenderá a piorar.  A grande maioria não sabe como pedir o que quer porque, antes de mais nada, acha que “amar é não precisar pedir”. A mulher tem de aprender a aceitar o homem, e é disso que ele precisa. Os homens precisam encontrar maneiras de mostrar que se importam, enquanto as mulheres precisam encontrar maneiras de mostrar que confiam. A mulher nunca deve ser julgada por precisar de reafirmação, enquanto o homem nunca deve ser julgado por precisar de “caverna” (isolamento).

Gray ensina um mnemônico para entendermos homens e mulheres. Os homens são como elásticos porque têm a tendência a se afastarem das mulheres para depois se reaproximarem delas. As mulheres são como ondas porque seu estado de ânimo cai repentinamente e depois volta a subir. Os homens ingenuamente esperam que seu ânimo esteja sempre em alta, o que é tão irreal quanto esperar que todo dia faça sol. Quando uma mulher não se sente segura em seu estado de baixo ânimo ela tenderá a evitar intimidade e sexo e/ou intensificar vícios como comida, bebida, cigarro, trabalho excessivo etc. Qualquer que seja a estratégia para proteger-se, a mulher tenderá a ficar insensível e incapaz de sentir amor. Os homens discutem pelo direito de serem livres, as mulheres discutem pelo direito de ficarem aborrecidas. Os homens querem espaço, as mulheres querem compreensão.

Teoricamente uma discussão não precisa ser destrutiva. Ela pode ser uma conversa estimulante que expresse diferenças e discordâncias. No entanto, a maioria dos casais comete o erro sutil, mas crasso, de não discutir o é da coisa, mas o como da coisa. Resolver uma discussão requer uma ampliação dos nossos pontos de vista para incluir e integrar um outro ponto de vista. Quanto mais íntimos de alguém mais difícil fica para ouvir objetivamente o seu ponto de vista sem reagir aos sentimentos negativos. Não é o que dizemos que machuca, mas o como dizemos. Na maioria das vezes, o que faz com que o outro resista ao argumento não é o que está sendo dito, mas como está sendo dito. As mulheres, muitas vezes sem se darem conta, aumentam a agressividade da discussão ao criticarem o comportamento do parceiro e, ainda pior, quando dão conselhos não solicitados.

Para evitar discussões, há 4 comportamentos (ou 4 “Cs” como diz Gray) que precisam ser evitados.

(1) Combater. Postura tipicamente masculina, trata-se do impulso de começar a discussão culpando, julgando, criticando e fazendo com que as parceiras pareçam erradas. A intimidação sempre enfraquece a confiança num relacionamento.

(2) Correr. Postura tipicamente masculina, trata-se do impulso de estabelecer uma guerra fria, recusar-se a falar e, por fim, nada se resolve.

(3) Camuflar. Postura tipicamente feminina, trata-se do impulso de fingir que não existe nenhum problema. Há aqui um medo das mulheres em serem sinceras com seus próprios sentimentos. Ela finge que está “tudo bem”.

(4) Curvar-se. Postura tipicamente feminina, trata-se do impulso de ceder artificialmente ao argumento alheio e assumir a culpa e a responsabilidade pelo que quer que esteja acontecendo.

De qualquer forma, toda e qualquer discussão tem por base um único fundamento: a falta de amor. Um dos dois, ou ambos, não se sentem amados e tal carência bloqueia a compreensão, a busca pelo entendimento e a concentração em torno do quê, e não do como.

Para encher o tanque de amor (cf. As cinco linguagens do amor) de uma mulher, o homem tem de entender que mais vale fazer pequenas, mas múltiplas, coisas do que algumas poucas e grandiosas coisas. Por outro lado, a mulher tem de entender que comunicar seu apreço pelo que foi feito é absolutamente fundamental. Dizer “obrigada”, por exemplo, é mandatório mesmo que você ache que ele tenha feito “nada mais do que sua obrigação”. Se o ressentimento feminino a impedir que apreciar o esforço masculino, seu vício por executar apenas coisas grandiosas dificilmente será curado. O ressentimento é especialmente nocivo na mulher, que tende a dar mais que receber e posteriormente se ressentir de não receber na mesma medida de volta. De repente, o “placar” de amor, que originalmente estava, digamos, 40 a 10 em favor da mulher, é reduzido mentalmente por ela a 30 a 0. Ou seja, o homem passa a ser um “zero” quando, na verdade, era ao menos 10. Evidentemente o homem também ficará ressentido. O homem tem de entender que a mulher, quando se dá livremente, subentende que o homem está contabilizando tudo isso a seu (da mulher) favor. Para o homem a coisa não funciona assim. O homem precisa ouvir, literalmente, o pedido de uma mulher. Lembre-se: homens são homens, e não mulheres. Parece óbvio? Sim, mas no dia a dia a coisa não é nada “óbvia”.

Os homens, quando se sentem desamados, ofendidos ou magoados, precisam aprender a perdoar ao invés de dar “pontos negativos” à parceira. Eles têm de se lembrar o quanto de bom elas fizeram. Negar a ela tudo é não apenas injusto, mas é abusivo.

Dissemos acima que homens e mulheres, quando querem apoio, ajuda, conversa etc., precisam pedir. Isso é especialmente difícil para as mulheres porque elas entendem, erroneamente, que “amar é nunca ter que pedir”. Nada mais falso. Homens não são mulheres e, portanto, não sabem instintivamente o que as mulheres querem e precisam. Por mais que pareça frustrando às mulheres, elas têm de aprender a pedir: a ideia de que “se eu tenho que pedir não conta” é completamente fantasiosa. Quando enfim chegam no limite e cedem, as mulheres, em vez de pedir, exigem.

Uma dica às mulheres. Os homens são movidos a apreço. Se não são apreciados desistem de dar. Se você está fazendo muito e ele pouco, faça um pouco menos para que não se ressinta tanto e possa apreciá-lo também. Assim o placar se reequilibra e aumentam as chances de você receber o apoio que precisa e merece. Gray chega ao ponto de declarar que um relacionamento é saudável quando ambos se sentem livres para pedir o que precisam e se permitem dizer “não” se assim escolherem.

Por fim, cabe lembrar que pessoas que se amam muito num dia frequentemente brigam no dia seguinte. Essas mudanças são confusas, mas são comuns e perfeitamente compreensíveis.

“O amor traz à tona nossos sentimentos mal resolvidos. Num dia estamos nos sentindo amados e, no dia seguinte, estamos repentinamente com medo de confiar no amor. As memórias dolorosas de rejeições passadas começam a vir à tona quando ficamos frente a frente para confiar e aceitar o amor da nossa parceira. Sentimentos que antes não conseguíamos expressar no passado de repente inundam nossa consciência quando estamos seguros para sentir. O amor descongela os sentimentos reprimidos, e gradativamente esses sentimentos não resolvidos começam a vir para a superfície durante um relacionamento. É como se seus sentimentos não resolvidos esperassem até que você estivesse se sentindo amado e então vissem à tona para serem cicatrizados. [...] Quando estamos aborrecidos, cerca de 90% do aborrecimento está relacionado com nosso passado e não tem nada a ver com o que pensamos que está nos aborrecendo. Em geral somente 10% do nosso aborrecimento se aplica à experiência presente”.

Tente escrever seus sentimentos, como se fosse uma carta à parceira, e dessa maneira, distante dela, procure lembrar-se quais experiências passadas estão sustentando seu aborrecimento e, assim, escrevendo, talvez você consiga neutralizar a negatividade e ser mais objetivo e, então, encontrará o tom e as palavras certas para dirigir-se à sua parceira quando estiver com ela pessoalmente.

Lembre-se: o amor também é sazonal. Há períodos (ou “fases”) em que ele é mais árduo. O processo de aprendizado não se resume apenas a ouvir e aplicar o que aprendeu, mas também em esquecer e relembrar-se.

Fonte: John Gray, Homens São de Marte, Mulheres São de Vênus, Editora Rocco, Rio de Janeiro, Brasil, 1996.

7 de fevereiro de 2024

Palavras de Cristo



A genial obra Palavras de Cristo do filosofo francês Michel Henry foi traduzida para inúmeros idiomas e é provavelmente seu livro mais conhecido. A estrutura do livro é um pouco confusa, mas é possível agrupar seus ensinamentos em 4 grandes temas. Vejamos:

I) Palavras de Cristo aos homens falando-lhes deles mesmos

Tais palavras são o que comumente chamamos de “sabedoria”. É quando Cristo diz, por exemplo, que o mal que há no mundo não provém do mundo, mas do homem mesmo. Mais especificamente, o mal encontra-se no coração, que é onde o homem prova tudo o que vive e a si mesmo.

E, chamando outra vez a multidão, disse-lhes: Ouvi-me vós, todos, e compreendei. Nada há, fora do homem, que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai dele isso é que contamina o homem. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça. Depois, quando deixou a multidão, e entrou em casa, os seus discípulos o interrogavam acerca desta parábola. E ele disse-lhes: Assim também vós estais sem entendimento? Não compreendeis que tudo o que de fora entra no homem não o pode contaminar, porque não entra no seu coração, mas no ventre, e é lançado fora, ficando puras todas as comidas? E dizia: O que sai do homem isso contamina o homem. Porque do interior do coração dos homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as fornicações, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Todos estes males procedem de dentro e contaminam o homem. (Marcos 7:14-23)

No entanto, o homem, obstinado que é, insiste em depositar seu interesse no mundo, que é menos do que o homem. Cristo, porém, ensina precisamente o contrário:

Por isso vos digo: Não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas? E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura? E, quanto ao vestuário, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; e eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé? Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos? Porque todas estas coisas os gentios procuram. Decerto vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas; mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal. (Mateus 6:25-34)

A propriedade constitutiva da vida humana, portanto, segundo Cristo, é provar-se. A realidade do homem, provado no coração, é, portanto, de natureza afetiva. A afetividade é a essência da vida. No coração reside nossa realidade, nossa vida.

Mas Cristo nos apresenta a vida não somente como uma oposição entre o homem e o mundo, mas como uma oposição entre o visível e o invisível. E esta oposição abre a possibilidade do homem viver em meio à hipocrisia, à falsidade, ao fingimento. É na nossa subjetividade invisível que reside nossa realidade efetiva, enquanto o visível é tão-só uma aparência. Portanto, temos de lutar incessantemente contra a hipocrisia.

Cristo ensina que a vida vale mais do que a Lei. E nesta oposição entre visível e invisível Cristo ensina que a vida humana não é uma progressão, um aperfeiçoamento, das relações naturais, mas uma ruptura.

Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada; porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; e assim os inimigos do homem serão os seus familiares. (Mateus 10:34-36)

Cuidais vós que vim trazer paz à terra? Não, vos digo, mas antes dissensão; porque daqui em diante estarão cinco divididos numa casa: três contra dois, e dois contra três. O pai estará dividido contra o filho, e o filho contra o pai; a mãe contra a filha, e a filha contra a mãe; a sogra contra sua nora, e a nora contra sua sogra. (Lucas 12:51-53)

Porque o reino dos céus é semelhante a um homem, pai de família, que saiu de madrugada a assalariar trabalhadores para a sua vinha. E, ajustando com os trabalhadores a um dinheiro por dia, mandou-os para a sua vinha. E, saindo perto da hora terceira, viu outros que estavam ociosos na praça. E disse-lhes: Ide vós também para a vinha, e dar-vos-ei o que for justo. E eles foram. Saindo outra vez, perto da hora sexta e nona, fez o mesmo. E, saindo perto da hora undécima, encontrou outros que estavam ociosos, e perguntou- lhes: Por que estais ociosos todo o dia? Disseram-lhe eles: Porque ninguém nos assalariou. Diz-lhes ele: Ide vós também para a vinha, e recebereis o que for justo. E, aproximando-se a noite, diz o senhor da vinha ao seu mordomo: Chama os trabalhadores, e paga-lhes o jornal, começando pelos derradeiros, até aos primeiros. E, chegando os que tinham ido perto da hora undécima, receberam um dinheiro cada um. Vindo, porém, os primeiros, cuidaram que haviam de receber mais; mas do mesmo modo receberam um dinheiro cada um. E, recebendo-o, murmuravam contra o pai de família, dizendo: Estes derradeiros trabalharam só uma hora, e tu os igualaste conosco, que suportamos a fadiga e a calma do dia. Mas ele, respondendo, disse a um deles: Amigo, não te faço agravo; não ajustaste tu comigo um dinheiro? Toma o que é teu, e retira-te; eu quero dar a este derradeiro tanto como a ti. Ou não me é lícito fazer o que quiser do que é meu? Ou é mau o teu olho porque eu sou bom? Assim os derradeiros serão primeiros, e os primeiros derradeiros; porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos. (Mateus 20:1-16)

Quando meditamos as palavras de Cristo, vemos que as relações desconcertantes anunciadas por Ele não são vividas dentro das modalidades da vida, dentro dos sentimentos, dentro do coração. É lá, no coração, e não no mundo, que serão felizes os que choram, os que são perseguidos, os que forem odiados, os que forem expulsos, os que forem insultados, os que forem desprezados. Por outro lado, infelizes são os ricos, os saciados, os que riem, os que são elogiados. E veja que as relações humanas, com base nessa ruptura radical das relações naturais, também são rompidas:

Mas a vós, que isto ouvis, digo: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam; bendizei os que vos maldizem, e orai pelos que vos caluniam. Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra; e ao que te houver tirado a capa, nem a túnica recuses. (Lucas 6:27-29)

Aqui Michel Henry desnuda uma característica crucial das relações humanas que é absolutamente desqualificada e condenada por Cristo: a reciprocidade. O que os homens fazem e o que os homens são explica-se a partir deles mesmos, a partir das relações recíprocas que imperam entre eles.

A raça humana já não recebe seu ser da luz do mundo, mas sim da relação interior com Deus. Abre-se, assim, um novo abismo no seio do invisível. Esse novo abismo é caracterizado pela não-reciprocidade. A era do olho por olho, dente por dente, está morta. Esse novo abismo descortina uma nova reciprocidade: a relação interior dos seres vivos com a Vida.

Mesmo quando as relações humanas são pautadas pelo “amor”, esse “amor” vem do coração. Mas do coração provém somente o mal. Portanto, o “amor” desinteressado que se constata nas relações humanas é um “amor” perfeitamente interesseiro, cobiçoso, egoísta. Como diz Henry: “Na ausência de Deus, o amor dissolve-se naturalmente: sou tributário do amor do outro e o amor do outro é tributário do meu, aleatório, do mesmo modo que a reciprocidade à qual deve a sua existência fugaz”.

II) Palavras de Cristo aos homens falando de Si mesmo

A não-reciprocidade significa a imanência da vida absoluta nos seres vivos. Uma nova genealogia, que é divina e não mais humana, se configura nesse novo abismo: não somos mais filhos de homens, mas filhos de Deus. Essa imanência significa que Cristo não apenas conhece e explica as coisas do Reino de Deus, mas Ele mesmo intervém na relação com os homens. A relação dos homens com Cristo, ademais, é revelada como sendo idêntica à relação de Cristo com Deus. Ao relacionar-se com Cristo, os homens cumprem automaticamente as bem-aventuranças anunciadas por Cristo. Cristo, portanto, identifica-Se com o próprio Deus.

Mas quem pode dar testemunho dessa condição de Jesus Cristo? Quem poderia atestar que Cristo é quem diz que é? Esse testemunho só poderia ter vindo, e veio, de uma única fonte: o próprio Pai.

III) Como a palavra de Cristo difere da palavra humana

Aqui Henry faz uma análise magistral das palavras de Cristo. As palavras humanas, dissemos acima, permitem o exercício da hipocrisia, ou seja, permite que o coração e o mal que carrega impere nas relações humanas: elas afirmam o que não existe e negam o que existe. A palavra de Cristo, a palavra da Vida, é incapaz de mentir. 

Veja, por exemplo, o sofrimento. O sofrimento prova-se a si mesmo. O sofrimento só é capaz de falar de si mesmo sofrendo.  Mesmo que eu diga “eu sofro” sem estar realmente sofrendo, essa palavra “sofro” é apenas uma significação do sofrimento, e não o próprio sofrimento. A palavra do mundo fala sobre o sofrimento. Somente a palavra do sofrimento é a palavra da verdade. A autorrevelação da vida permite provar, sem erros, o sofrimento.

Aqui observamos a relação intima e indestrutível entre Verdade e Vida. “Enquanto que a palavra do mundo fala do que se tornou manifesto na indiferença da exterioridade, é no sentimento, neste sentimento em que ela se prova sempre, de modo patético, que fala a palavra da vida”, diz Henry.

Do mesmo modo as palavras de Cristo falam de maneira inegável da Verdade.

IV) Como os homens são capazes de ouvir a palavra de Deus

Os homens são capazes de ouvir Suas palavras, e nelas detectar a verdade inegável, porque é o próprio Deus quem confere este poder aos homens. Quando Cristo diz:

Disse-lhe, pois, Pilatos: Não me falas a mim? Não sabes tu que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar? Respondeu Jesus: Nenhum poder terias contra mim, se de cima não te fosse dado. (João 19:10,11)

Porque sem mim nada podeis fazer. (João 15:5)

Ele não se refere apenas ao poder dado a Pilatos, mas a todo e qualquer poder. Ora, mas essa não é a experiência que temos. No dia a dia facilmente assumimos que o exercício dos nossos poderes é algo que brota de nós mesmos, de nosso eu, de nossa vida. Nós imaginamos que esse poder nós colhemos de nós mesmos. Imaginamos que se somos a fonte e o fundamento de nosso poder, somos também a fonte e o fundamento de nosso próprio ser. Eis a ilusão das ilusões: “Este eu inultrapassavelmente passivo em relação a si mesmo, sempre já dado a si mesmo na vida, posto nela independentemente do seu querer, ei-lo a seus olhos um Sujeito omnipotente, senhor de si mesmo, princípio de algum modo absoluto da sua condição de vivo, de seu eu, do conjunto das suas capacidades e talentos. [...] É deste coração cego à Verdade, surdo à Palavra da vida, endurecido, preocupado exclusivamente consigo, tomando-se como ponto de partida e término das suas experiencias e das suas ações, é dele que sai o mal”.

É na vida que se encontra aquilo que Henry chama de “autorrevelação patética”. Esta autorrevelação é o que permite, por exemplo, que sintamos o sofrimento. O sofrimento é algo que não fala ao mundo, mas somente ao coração humano. O mesmo podemos dizer da alegria, da angústia, dos desejos, das emoções, dos quereres, dos pensamentos etc. Tudo é sentido ali.

O poder de Cristo é igualmente exercido no coração, onde ocorre uma purificação, uma transformação radical. É Cristo quem dá a vida, é Ele quem a restabelece, é no coração que o faz. Diz Henry: “Escutar a palavra é então consubstancial à natureza humana. Esta identidade da revelação do homem a si, no seu coração, e da revelação de Deus no seu Verbo explica porque é que Deus vê no íntimo dos corações, um dos grandes temas do ensino de Cristo dirigido aos homens. [...] A possibilidade de o homem escutar, no seu coração, a palavra de Cristo é também a possibilidade de compreender as Escrituras”.

Cristo é a Vida. Se a vida é aquilo com que provamos a alegria, o sofrimento etc. o Cristo é o próprio abraço com o qual provamos tudo isso. Nossa vida é a Vida. De novo, provar a palavra é consubstancial a nós.

* * *

Um exemplo característico de como as palavras de Cristo, uma vez que ressoam num coração previamente purificado, são acolhidas como verdade inerrante é o de São Justino Filósofo

Fonte: Michel Henry, Palavras de Cristo, Colibri Edições, Lisboa, Portugal, 2003.