3 de agosto de 2005

Aristóteles - Parte II

Parte II: Homem Produtor
O Crusoé de Aristóteles

Para sondarmos o homem enquanto produtor, é interessante primeiramente entendermos a diferença entre aquilo que chamamos de artificial e aquilo que chamamos de natural.

Pensemos no fogo, por exemplo. O fogo, em si, é algo inteiramente natural. Ele pode ocorrer durante tempestades numa floresta, onde os raios incidentes nas árvores podem causar o fogo. Trata-se de um evento natural. No entanto, se imaginarmos que esse fogo foi feito por alguém num piquenique, por exemplo, então sabemos que o fogo é artificial, produzido pelo homem.

Que o fogo produzido pelo homem num piquenique é artificial, isto nos parece claro. Mas imagine agora uma casa, produzida pelo mesmo homem. O fogo e a casa são ambos artificiais, você diria, mas será que são igualmente artificiais? Claro que não, afinal, o fogo é algo que pode acontecer na natureza, sem a ajuda do homem, mas jamais veríamos uma casa sendo criada pela natureza, sem qualquer intervenção humana. Chamemos então o fogo do piquenique de acontecimento artificial e a casa de produto artificial.

A casa é artificial porque foi produzida pelo homem, mas será que é totalmente artificial, isto é, totalmente criada pelo homem? Não, porque o homem criou a casa mas não a madeira de que ela é feita. A casa não foi feita do nada, mas da madeira. É por isso que chamamos a casa de produto artificial e não de criação artificial.

Considere agora um bebê, ou a prole de qualquer animal. Esse bebê é uma criação ou uma produção? Trata-se de uma questão importante. O bebê não é nem um evento natural como o fogo causado por raios incidentes em árvores, nem um acontecimento artificial como o fogo de um piquenique, nem um produto artificial como uma casa.

Ora, mas não seria o bebê também um acontecimento artificial? Afinal, os pais podem ter planejado o filho e isso faria dele um acontecimento artificial. Isso está correto até certo ponto, mas há um detalhe que pode ter lhe escapado: é verdade que o bebê, assim como o fogo de piquenique, pode ser planejado antecipadamente; contudo, o bebê também pode nascer sem planejamento algum por parte dos pais, coisa que não pode ocorrer com o fogo de piquenique. Não há fogo de piquenique que surja sem planejamento humano. Se um fogo surgir de repente num piquenique então ele não será um acontecimento artificial, mas um evento natural, como o fogo aceso por raios numa tempestade.

Parece então que o bebê, ou qualquer outro ser vivo, não se encaixa com perfeição em nenhuma das três categorias acima.

Vamos expandir um pouco mais esta percepção. Em vez de nos determos sobre a artificialidade ou naturalidade de produtos e acontecimentos, sondemos os movimentos e mudanças aos quais eles podem ser submetidos.

Mudança e Permanência
O mundo está preenchido por entidades em constante mudança. Olhamos à nossa volta e observamos pessoas, carros, equipamentos e dispositivos de toda sorte se movendo de lá para cá, daqui para ali. Pense em como este texto chegou às suas mãos e como você se movimenta, ao menos com os olhos, para lê-lo. Há muito movimento envolvido somente neste pequeno acontecimento. Entretanto, as diversas mudanças e movimentos não implicam em alterar por completo a entidade que se move. Por exemplo, você mudou bastante desde que era criança, mas continua sendo a mesma pessoa, isto é, você. A maçã que cai da árvore movimentou-se ao longo do trajeto, mudou de posição, mas apesar disso continua sendo o que é, uma maçã. Percebemos então que há algo permanente, que persiste, e algo que realmente muda no movimento.

A primeira mudança que nos vem à mente é a locomoção (mudança de lugar). O cair da maçã, o andar do carro, o rolar da bola, todos estes são exemplos clássicos de locomoção. Mas o que muda e o que permanece na locomoção? Fácil: o objeto que se locomove permanece o mesmo e a posição espacial dele é o elemento mutante. E veja que na locomoção cabem as mesmas categorias artificial e natural que discutimos à pouco. Uma maçã que cai é locomoção natural, um carro que anda é locomoção artificial.

Uma segunda mudança, um pouco menos óbvia mas também fácil de perceber, é a alteração (mudança de qualidade). Pense, por exemplo, no amadurecimento de um tomate. Ele era verde e tornou-se vermelho. Houve mudança de lugar? Não, o tomate permaneceu onde estava desde o início do processo de amadurecimento. Então que mudança houve? Uma mudança na qualidade, nas propriedades e características, do tomate. Novamente, as categorias artificial e natural cabem aqui. Um tomate que amadurece é alteração natural, uma casa sendo pintada pelo homem é uma alteração artificial.

Há uma terceira mudança, igualmente fácil de perceber, que podemos chamar simplesmente de mudança de quantidade. Similarmente, há mudanças de quantidade artificiais e naturais. Por exemplo, um balão de aniversário que inflamos é uma mudança de quantidade artificial. Um coelho que cresce conforme envelhece é uma mudança de quantidade natural.

Nos três tipos de mudança acima descritos, o ser que muda não deixa de ser ele mesmo. O balão de aniversário, mesmo cheio de ar quando antes era murcho, continua sendo o balão de aniversário. Mas há um quarto tipo de mudança sobre o qual raramente nos detemos e que é de suma importância.

Imagine o mesmo balão de aniversário. Conforme inflamos ar no seu interior, ele aumenta de tamanho. Suponha que continuemos a inflá-lo, cada vez mais. Num dado instante, o balão estoura e sobram apenas pedaços do balão. Não há mais balão. Esses rasgos de balão não são o mesmo balão que inflamos e decoramos o salão de festas.

Imagine o coelho do qual falamos acima. Ele cresce conforme envelhece, pára de crescer quando adulto, envelhece e morre. Pergunto: o corpo morto do coelho é o mesmo coelho que alimentamos com cenouras e que corre pelo campo? Não há mais coelho, mas apenas um cadáver de coelho.

Esse quarto tipo de mudança é chamado de mudança substancial. Ele é especial sob diversos aspectos. Por exemplo, o balão de aniversário que estourou, num dado instante, era um balão de aniversário e, no instante seguinte, não é mais. O coelho que morreu, num dado instante, era um coelho e, no instante seguinte, não é mais. Percebemos que essa quarta mudança ocorre instantaneamente, num lapso de tempo.

As Quatro Causas

As “quatro causas” são as respostas que Aristóteles dá às quatro perguntas sobre as mudanças ou movimentos acima descritos.

A primeira pergunta a respeito de qualquer produção humana é: Do quê é feita? Esta é a causa material. Por exemplo, a causa material de um sapato é o couro.

A segunda pergunta é: Quem a fez? Esta é a causa eficiente. Por exemplo, a causa eficiente de um sapato é o sapateiro ou as diversas pessoas envolvidas em sua produção.

A terceira pergunta é: O quê está sendo feito? Esta é a causa formal. Por exemplo, o próprio sapato é a causa formal de sua produção.

A quarta pergunta é: Para quê está sendo feito? ou Por quê está sendo feito? Esta é a causa final. Por exemplo, a causa final de um sapato é a proteção dos pés, proporcionar conforto ao caminhar etc.

As quatro causas são fatores indispensáveis que precisam estar presentes e operantes, seja o que for que o homem produza. Observe que, em si, as quatro causas são necessárias mas nenhuma delas, em si, é suficiente. Todas as quatro precisam estar presentes.

Quando transformamos matérias-primas em algo que elas não são – couro em sapatos, ouro em braceletes etc. – estamos lhes dando uma forma que elas não tinham anteriormente. No entanto, devemos tomar o cuidado de não confundirmos forma com o formato ou a figura de um objeto. Para dirimir um pouco esta confusão, consideremos uma bola de tênis rebatida por um jogador. Trata-se de um movimento. Qual a causa formal dele? Ora, o lugar para onde a bola foi rebatida é a causa formal da raquetada.

Algumas vezes, a causa final e a causa formal são a mesma causa. Por exemplo, se eu pinto esta cadeira de vermelho, a causa formal é a vermelhidão da cadeira, enquanto a causa final é combiná-la com outros móveis da minha sala. Por outro lado, não podemos dizer o mesmo de um tomate que se torna vermelho à medida que amadurece. Sua causa formal é a vermelhidão mas qual a causa final deste movimento? É, igualmente, a vermelhidão, já que dificilmente poderíamos dizer que a natureza torna o tomate vermelho como indício de que agora ele é comestível!

Das mudanças que analisamos até agora, percebemos facilmente que a mudança substancial distingue-se claramente das outras três (quantidade, qualidade, lugar). Ela é especial porque representa o vir-a-ser (coming to be) e o perecer (passing away) de uma coisa.

Ser ou Não Ser

Alguns pedaços de madeira largados num canto não são uma cadeira. Podemos dizer que falta a esses pedaços de madeira cadeireza de sua parte. Falta-lhes a forma de uma cadeira.

Além de lhes faltar cadeireza (forma de cadeira), os pedaços de madeira precisam ter a capacidade para adquirir a cadeireza. Chamemos essa capacidade de potencialidade.

Quando os pedaços de madeira tornam-se uma cadeira, sua potencialidade para assumir a forma de cadeira foi actualizada; e, evidentemente, não é mais uma potencialidade.

A madeira pode se tornar cadeira, mas ela não poderá se tornar uma lâmpada elétrica ou uma fonte de água. A matéria, que já tem em si uma dada forma, tem uma potencialidade limitada para adquirir outras formas.

Idéias Produtivas e Know-How

No entanto, quando o carpinteiro tomou os pedaços de madeira e transformou-os numa cadeira, ele tinha em mente alguma idéia da cadeira em particular que iria produzir. As idéias produtivas baseiam-se nas formas que a matéria pode assumir, suplementadas por pensamentos imaginativos tais como tamanhos, formatos, configurações etc.

Há duas maneiras para que uma idéia produtiva possa ser expressa. Por exemplo, um sujeito pode ter a idéia de uma casa a ser contruída e desenhar o projeto, enquanto outro sujeito executa o plano. O indivíduo que traçou o projeto é aquele que teve a idéia produtiva. O indivíduo que executou o projeto é aquele que teve o know-how. Note que idéias produtivas e know-how são fatores distintos na produção de coisas. A mente, as mãos e as ferramentas do artífice são, juntos, a causa eficiente da coisa produzida. Desses três fatores, a mente é o fator principal. É ela que tem a idéia produtiva e o know-how, sem os quais nem as mãos ou as ferramentas são capazes de executar. Os outros dois fatores (mãos, ferramentas) são fatores meramente instrumentais.

A palavra técnica vem do grego technikos, que Aristóteles usava ao referir-se a know-how. Em latim, a palavra utilizada era ars, que tornou-se arte. O artista é, portanto, aquele que domina a técnica, habilidade ou know-how para produzir coisas. Se, além do know-how, ele também tiver a idéia produtiva, então ele será chamado de artista criativo.

A arte como know-how deve existir no artista antes de ele produzir sua obra de arte. Assim, carpinteiros, cozinheiros, sapateiros e alfaiates são artistas, pois possuem know-how para produzir suas obras de arte. Mas e quanto a médicos, agricultores e professores, por exemplo? São eles artistas também? Sim, porque todos possuem certas habilidades e know-how que os qualificam como artistas. Porém, há uma diferença. Professores, médicos e agricultores são artistas cooperativos e não produtivos, uma vez que não é absolutamente necessária a presença de um professor para que adquiramos conhecimento. Similarmente, não é absolutamente necessária a presença de um agricultor para que tomateiros e macieiras nasçam, cresçam e dêem frutos. Em suma, professores, agricultores e médicos apenas ajudam, mas não criam.

Há obras de arte e obras de arte. Uma cadeira e uma estátua são ambas obras de arte, embora a abordagem que lhes damos seja diferente. Uma cadeira é usada, uma estátua é apreciada. Nós usamos algo quando o empregamos com certo propósito. Nós apreciamos algo quando nos satisfazemos com o prazer que extraímos ao percebê-lo de alguma maneira – seja observando, ouvindo ou lendo.

O prazer que extraímos de uma obra de arte tem a ver com aquilo que experimentamos como belo. Curioso é que uma cadeira também pode ser bela, embora não seja um objeto cujo propósito é a apreciação. De alguma forma, a cadeira nos parece bela porque é bem feita, mas não é somente isso que apreciamos numa estátua, por exemplo. Certamente, há algo de bem feito na estátua que lhe confere alguma beleza, mas isso não é tudo. Afinal, uma sopa ou uma camisa bem feitas são apreciadas pela grande maioria das pessoas exatamente por serem bem feitas. Mas e uma estátua? Ficaríamos surpresos se uma pessoa julgasse a estátua horrível enquanto outra a julgasse belíssima? Certamente não. Nas obras de arte apreciativas, a classificação de belo não é concorde na maioria das pessoas.
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Do que vimos até aqui, conhecimento e entendimento (ou, poderíamos dizer, a filosofia) têm sido empregados na produção de coisas. Mas conhecimento e entendimento também podem orientar nossas vidas e gerenciar nossas sociedades. Há, assim, um uso prático e não apenas produtivo da filosofia, isto é, a filosofia pode ser empregada não apenas para produzir mas também para agir. E isto é assunto para a próxima parte.