4 de agosto de 2005

Aristóteles - Parte IV

Parte IV: Homem Conhecedor

O Que Entra na Mentre e o Que Sai Dela

É hora de examinarmos a terceira dimensão do homem. Já estudamos o homem enquanto produtor e o homem enquanto agente.

Segundo Aristóteles, as palavras que utilizamos expressam nossas idéias. Mas de onde vêm nossas idéias? Elas são produto de nossas experiências. Por isso, concentremo-nos inicialmente em nossos sentidos. É lá que nascem nossas experiências.

Ocorre que as sensações que recebemos por meio de nossos órgãos dos sentidos é apenas matéria-prima passiva que utilizamos para formar nossas experiências sensoriais. Ao reunirmos nossas sensações numa percepção, então passamos a ser mais ativos que passivos.

Todavia, há mais do que percepções no mundo exterior. Nossas experiências envolvem também memória e imaginação. Mas quando você percebe um gato, por exemplo, não são somente sua imaginação e sua memória que estão envolvidas; seu entendimento também estará desempenhando papel perceptivo. Afinal, se você não entendesse, você jamais teria experiências perceptivas. Tais entendimentos são resultado de nossas mentes, que formam idéias de gatos, cães, de andar, de sentar etc. É importante observar que nossas idéias baseiam-se no mundo exterior, mas formadas pela própria mente na tentativa de entender o mundo. São pelas idéias que procuramos apreender a natureza de cães, gatos etc.

E como nossas mentes formam idéias? Captando as formas das coisas e separando-as da matéria dessas coisas. Veja que interessante: produzir coisas significa traduzirmos nossas idéias na matéria; produzir idéias significa extrair a forma da matéria. A idéia de uma maçã usa apenas a forma da maçã, não a matéria da maçã.

Porém, nossas idéias não se limitam a coisas que percebemos, lembramos ou imaginamos. Há uma infinidade de objetos do pensamento imperceptíveis; por exemplo: liberdade, justiça, virtude etc.

Note ainda que as sensações e idéias não são verdadeiras em si. Se digo “cão” a você, você não estará apto a responde “sim” ou “não”. Só quando digo “este cão é preto” é que você poderá dizem “sim” ou “não”, “verdadeiro” ou “falso”. É aí que chegamos ao nível da formação de opinião.

Então, Aristóteles identifica três níveis de pensamento que a mente opera para produzir pensamentos:

1) da matéria-prima sensorial, a mente forma idéias;
2) da idéia, a mente forma julgamentos (“sim”, “não” etc.);
3) quando uma declaração ou sentença é base para afirmarmos ou negarmos outra, chegamos ao nível do raciocínio, ou inferência (lógico, ilógico). Saímos do nível do julgamento (apenas “é”, “não é”, “sim”, “não” etc.) e começamos a fornecer razões.

Lógica

Falemos então sobre lógica. Sobre lógica, há dois assuntos de interesse: a lei da contradição e a teoria do silogismo.

A lei da contradição diz que não devemos afirmar e negar a mesma proposição. Ela é tão óbvia que Aristóteles a considerava auto-evidente, isto é, inegável. Eis três regras da lei da contradição:

1) Quando afirmamos duas coisas contraditórias, ambas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, nem ambas podem ser falsas ao mesmo tempo. Por exemplo: todos os cisnes são brancos e alguns cisnes não são brancos.
2) Quando afirmamos duas coisas contrárias, ambas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas ambas podem ser falsas ao mesmo tempo. Por exemplo: todos os cisnes são brancos e nenhum cisne é branco.
3) Quando afirmamos duas coisas subcontrárias, ambas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas ambas não podem ser falsas ao mesmo tempo. Por exemplo: alguns cisnes são brancos e alguns cisnes não são brancos.

A importância destras três regras é imensa. Observá-las significa evitar que sejamos inconsistentes e, além disso, nos ajudam a detectar inconsistências alheias.

Estendamos um pouco mais nossos estudos em lógica. As proposições contém certos termos que nos permitem tirar conclusões diretas. Por exemplo, quando dizemos que uma moeda, numa disputa de cara-e-coroa, deu “cara”, já sabemos que o outro lado é “coroa”. Não é necessário verificarmos o outro lado da moeda para nos certificar disso. Aristóteles chamava isso de inferência imediata, ou seja, nenhuma etapa intermediária de raciocínio é necessária.

E como é fácil cometermos erros de inferência! Por exemplo, se dizemos que todos os cisnes são brancos, podemos inferir que alguns objetos brancos são cisnes, mas não podemos inferir que todos os objetos brancos são cisnes. Tal inferência incorreta Aristóteles chamava de conversão ilícita.

Há dois pares de palavras que ajudam a expressar a correção ou incorreção de uma inferência:

1) Se/Então: Se todos os cisnes são brancos, então alguns cisnes são brancos. Observe que pode ser falso o fato de todos os cisnes serem brancos mas, mesmo asssim, seria perfeita e corretamente lógico inferir que alguns cisnes são brancos se todos fossem brancos. O par se/então serve para verificar a correção ou incorreção lógica entre as duas sentenças e independe da veracidade delas em si.
2) Dado que/Portanto: Dado que todos os cisnes são brancos, portanto alguns cisnes são brancos. A diferença aqui é crucial. Quando digo “Se todos os cisnes são brancos...”, apenas disse se todos são, e não que todos são. Mas quando digo “Dado que todos os cisnes são brancos...”, eu disse que todos são.

Estas regras de inferência imediata ajudam-nos a entender as regras de raciocínio da teoria do silogismo de Aristóteles. Eis um silogismo típico:

Premissa maior: Todos os animais são mortais
Premissa menor: Todos os homens são animais
Conclusão: Todos os homens são mortais

Observe que o raciocínio silogístico é mais complexo que as inferências imediatas. Na premissa maior e na premissa menor há um meio-termo (no exemplo acima é a palavra “animais”) que as media. Esse meio-termo cumpriu sua função no raciocínio e pôde ser descartado na conclusão (observe que na conclusão do exemplo não aparece o meio-termo “animais”). É por causa do meio-termo que Aristóteles chama o silogismo de inferência mediata.

Similarmente à inferência imediata, o raciocínio silogístico também trabalha com os pares se/então e dado que/portanto. É como se as premissas maior e menor fossem o “se” e a conclusão o “então”. Temos o direito de afirmar a veracidade da conclusão se afirmarmos a veracidade das premissas. E temos o direito de negar a veracidade de uma ou ambas as premissas se negarmos a veracidade da conclusão.

Dizendo a Verdade e Pensando Nela

Você já deve ter percebido que a palavra “verdade” foi extensamente usada até aqui. O que é dizer a verdade? O que é dizer mentira? Ora, dizer “é” quando você acha que “não é” – ou dizer “não é” quando você acha que “é” – é dizer uma mentira. E dizer a verdade é o oposto disso, ou seja, dizer “é” quando realmente acho que “é” e dizer “não é” quando realmente acho que “não é”. Portanto, dizer a verdade é expressar-se em palavras que concordem ou se conformem àquilo que se pensa.

Bem sabemos que uma coisa é dizer a verdade, outra coisa é pensar a verdade. Podemos muito bem dizer o que realmente pensamos mas, mesmo assim, estarmos errados no que pensamos. Isso ocorre, por exemplo, quando alguém nos pergunta onde fica determinada avenida e damos as direções que realmente pensamos serem as corretas mas, mais tarde, verificamos que estávamos enganados. Então, nesse caso, dissemos a verdade mas pensamos uma mentira. Constatamos então que dizer a verdade é uma concordância entre o que dizemos e o que pensamos, enquanto pensar a verdade é uma concordância entre o conteúdo da mente e a realidade.

Mas será que tudo que sai da nossa boca é ou verdade ou mentira? Aristóteles ensina que não. Há certas expressões que não são nem verdade nem mentira. Perguntas não são nem verdade nem mentira. Pedidos não são nem verdade nem mentira. Ordens não são nem verdade nem mentira. Ou seja, apenas frases declarativas – que contenham as palavras “é” ou “não é” ou que possam ser refraseadas para as conter – são verdadeiras ou falsas.

Parece então que apenas sentenças descritivas podem ser verdadeiras ou falsas, enquanto sentenças prescritivas (que digam o que você deve ou não deve fazer) não poderiam ser classificadas como verdadeiras nem falsas. Mas Aristóteles nos ensina que não é assim!

Segundo Aristóteles, as sentenças descritivas são verdadeiras quando se conformam à realidade enquanto as sentenças prescritivas são verdadeiras quando se conforma ao desejo certo. Mas o que é o desejo certo? É aquele desejo realmente bom para os homens. E quail o desejo realmente bom para os homens? Qualquer desejo que satisfaça às necessidades humanas. Ora, trata-se de uma verdade auto-evidente que os homens devam desejar aquilo que é realmente bom para eles, da mesma forma que o todo é maior do que as partes é uma verdade auto-evidente.

Ocorre que há poucas verdades auto-evidentes que podemos estabelecer. Assim, se a verdade não for auto-evidente numa dada questão, sua veracidade poderá ser estabelecida por meio de argumentos ou raciocínio. Por exemplo: o Estado de São Paulo é menor do que o Brasil. Não é difícil demonstrar, tendo em mente a premissa de que o todo é maior do que as partes, a veracidade dessa declaração.

Mas, assim como há poucas verdades auto-evidentes disponíveis, há poucas questões que se nos apresentam cuja veracidade seja demonstrável por meio de argumentos e raciocínios. Na maioria dos casos, ficamos na dúvida se uma sentença é verdadeira ou falsa. Esses casos, se solúveis, devem ser resolvidos com o auxílio de nossas experiências. É fato também que nem sempre nossos sentidos são confiáveis. Então, podemos ainda apelar para o testemunho de outras pessoas a fim de verificar se nossas observações estão corretas.

Vejamos um exemplo. Um carro acaba de bater num poste. Eu, testemunha ocular, digo que o carro estava muito rápido. Mas estarei certo disso? Bem, há outras testemunhas no local que, como eu, também dizem que o carro estava muito rápido. Quanto mais testemunhas estejam à disposição para confirmar minha declaração, tanto mais provavelmente verdadeira ela será. Mas você pode estar se perguntando: uma declaração ser provavelmente verdadeira não é diferente de ser certamente verdadeira? Devemos realmente estabelecer uma verdade em casos assim? Não estaríamos sendo presunçosos ao considerarmos algo provavelmente verdadeira como certamente verdadeiro?

Esse é um engano relativamente comum. É claro que há uma verdade ou falsidade a ser extraída da declaração “o carro estava muito rápido”. Afinal, ou o carro estava muito rápido ou não estava. Se eu digo que provavelmente o carro estava muito rápido, isso quer dizer que estou estimando meu grau de segurança a respeito do que aconteceu. Graus de probabilidade não são graus de verdade. Lembre-se: ou o carro estava muito rápido ou não estava. Uma verdade que afirmamos com certeza, como a de que o todo é maior do que as partes, não é “mais verdadeira” do que quando afirmamos que o carro provavelmente estava muito rápido. É claro que, devido ao grau de segurança a respeito do que declaramos como verdadeiro ou falso, podemos questionar nossas declarações, mas não podemos questionar que há uma verdade a ser extraída do fato observável.

Além da Dúvida Razoável

Aristóteles notava que há dois níveis de declarações. Um nível é a sentença que tem status de conhecimento. O outro é o nível cuja sentença tem status de opinião. As opiniões, na medida que tenhamos evidências à disposição, podem se aproximar ou se afastar do status de conhecimento. O conhecimento, diferentemente, consiste em verdades necessárias. Por exemplo, se há um todo, esse todo deve necessariamente ser maior do que as partes.

Como você percebeu no exemplo, as verdades auto-evidentes são conhecimento, assim como as conclusões que podemos demonstrar a partir das verdades auto-evidentes também são conhecimento. Aristóteles considerava a geometria um excelente exemplo de conhecimento de alta qualidade.

Se sustento uma opinião só porque alguém me disse que ela era verdadeira, então trata-se de mera opinião da minha parte; ou seja, as meras opiniões representam wishful thinking (pensamento desejoso) nossos, às quais estamos emocionalmente apegados. Similarmente, nossas preferências alimentares também são meras opiniões, na medida em que não há argumento racional que as sustente. No entanto, quando temos evidências à nossa disposição, as meras opiniões sobem de status e gradualmente aproximam-se do conhecimento. Por exemplo, eu e você podemos discordar a respeito do futuro da internet. Você pode achar que ela crescerá e eu posso achar que ela entrará em colapso ou cederá a vez a outra tecnologia. Para sustentar nossas opiniões, levamos em conta evidências, estatísticas, estudos etc. Observe que as declarações que eu e você damos não fazem mais parte do status de meras opiniões, pois estamos embasando-as em algo mais do que preferências pessoais ou apegos emocionais. E Aristóteles lembrava ainda que caso tenhamos as grandes autoridades de um dado assunto do nosso lado, o status de nossas declarações subiria ainda mais.

Quando as opiniões são baseadas em evidências científicas e raciocínios científicos, então aproximam-se cada vez mais do conhecimento. Mas nenhuma conclusão científica alcançará o status de verdade última e final, pois sempre será possível corrigi-la ou rejeita-la por meio de novas investigações e raciocínios mais aprimorados; em outras palavras, nenhuma conclusão científica é, em si, uma verdade necessária. Tal conclusão será, na melhor das hipóteses, um conhecimento bem estabelecido por enquanto.

Além das conclusões científicas, as conclusões filosóficas também podem atingir o status de conhecimento. Mas qual a diferença entre uma conclusão científica e uma conclusão filosófica? Simples. As conclusões científicas baseiam-se em pesquisas e investigações, sejam elas conduzidas em laboratórios ou não. As conclusões filosóficas baseiam-se no pensamento a partir das experiências que todos nós temos, sem a necessidade de pesquisas. A filosofia não pesquisa e não desenvolve experimentos. E porque as reflexões filosóficas baseiam-se em experiências comuns, e não em experiências especiais, elas não se deixam afetar por pesquisas científicas posteriores. É por isso, por exemplo, que o conhecimento filosófico alcançado por Aristóteles continua válido, mesmo séculos e séculos depois de estabelecido.

Não podemos nos esquecer de um quinto e último tipo de conhecimento bem estabelecido: as investigações históricas, que chegam a conclusões a partir de fatos e dados registrados.

Vale à pena agora resumirmos os cinco tipos de opiniões, para termos uma visão de conjunto. Observe que apenas ao tipo (1) podemos atribuir status de conhecimento propriamente dito. Os outros quatro tipos permanecem com status de opiniões, não importando quão bem-estabelecidas; na melhor das hipóteses, podemos chamá-las de conhecimento por enquanto.

(1) verdades auto-evidentes;
(2) pensamentos matemático-geométricos;
(3) pesquisas científicas;
(4) reflexões filosóficas;
(5) pesquisas históricas.