3 de novembro de 2017

Kant e o caráter ambivalente da metafísica

Para saber se uma série de saberes efetivamente empreendeu “a marcha segura…o real caminho de uma ciência”, basta prestar atenção a seu conteúdo e aos resultados alcançados. Será ciencia: 1°, se existe verdade nos resultados obtidos; 2°, se existem não apenas resultados verdadeiros, mas também, além disso, uma direção fixa, um método, na investigação da verdade; 3°, se cada verdade assim conquistada aumenta o saber anterior, e não simplesmente o destrói, isto é, se a marcha, de acordó com aquele método, é realmente progressiva. Certamente poderá haver oscilações, poderá haver saberes duvidosos, poderá haver retificações parciais, às vezes muito profundas; mas, definitivamente, tomada em seu conjunto, a ciencia vai se compondo de verdades já estabelecidas. Verdade, método e progresso firme: essas são as características daquilo que chamamos de ciêmcia.

A lógica entrou exemplarmente no real caminho da ciencia. Em segundo lugar, a matemática. Em linha reta, por assim dizer, de Galileu a Newton, a física se constitui em um corpo de doutrina sólidamente estabelecida e que progride com firmeza. Kant insinua que, em sua época, a mesma coisa começou a acontecer com a química graças a Stahl.

Apesar de toda sua apodêixis [argumentação, caráter demonstrativo], o que há na metafísica que não esteja submetido a discussão sem chegar nunca a clarezas últimas? Qual é o conjunto de conhecimentos do qual se pode dizer, com rigor, que se trata de algo já estabelecido, com respeito ao qual todos os filósofos estão de acordo? A metafísica ofrece o triste espetáculo de ainda não ter entrado no caminho seguro da ciência.

Compreende-se que, diante dessa situação, Kant nos diga que a filosofía não entrou ainda no caminho seguro da ciência. No entanto, diz-nos, “enquanto houver homens no mundo, haverá metafísica”, porque a metafísica é uma “disposição fundamental” da natureza humana.

Pois bem; um exame atento dos principios da metafísica nos mostra que todos eles são sintéticos. Assim, por exemplo, “tudo o que acontece tem uma causa” é um juízo sintético. Pois do conceito de uma “coisa” jamais sairá por análise o conceito de “outra” coisa que fosse sua causa. A verdade daquele juízo não se funda em evidencia. Também não se funda em um recurso aos objetos. A experiência, dizia Kant seguindo Hume, nos mostra que uma coisa vem depois de outra, mas não mostra jamais que o antecedente seja causa do consequente. No entanto, esse é um juízo que expressa uma necessidade absoluta com uma verdade independente de qualquer experiência. É, portanto, um juízo sintético a priori. Quer dizer, sua verdade se encontra fundada não no objeto nem na evidência, mas em um principio diferente.

Definitivamente, o emprego de ciências como a matemática e a física nos mostrou que o entendimento tem juízos sintéticos a priori. Isso quer dizer que nesses conhecimentos é o entendimento o que determina de antemão os objetos, por um principio que não é a evidência nem eperiência, mas um principio diferente. E a análise dos primeiros juízos metafísicos nos fez ver, igualmente, que sua verdade também está fundada no fato de que é o entendimento que determina, de uma forma ou de outra, o objeto. Este é o sentido da revolução copernicana de que Kant nos fala.

Esta fórmula significa simplesmente que o problema está em averiguar qual é e como é este principio cuja índole consiste não em que o entendimento gire em torno dos objetos adequando-se a eles, mas em que os objetos girem em torno do entendimento e que seja este o que os determine.

Trata-se de um movimento em dois tempos, por assim dizer. Primeiro, as categorias são descobertas por “regressão” desde o objeto até seus supostos últimos, isto é, até o “eu penso”. Depois, por “descida”, baixa-se do “eu penso” até a constituição do objeto enquanto tal. Este é  método que Kant chama de método transcedental.

Para Kant, é isso o que explica o caráter ambivalente do que é metafísico em orden ao conhecimento. Por um lado, não alcança as coisas tais como elas são; mas, por outro, é inevitável, porque da própria estrutura da experiência dos objetos parte o ímpeto pelo qual temos de forjar para nós uma Ideia da totalidade de objetos de toda possível experiência. E o polo, o farol que ilumina, orienta e dirige esse ímpeto, é a Ideia – Ideia do Mundo, da Alma, de Deus. Em contrapartida, pretender que essas Ideias sejam conceitos aplicáveis a algo dado, ou seja, pretender que elas sirvam para explicar, para entender como são as coisas em si mesmas, na medida em que constituem uma totalidade última, e além disso uma totalidade última causada por uma causa primeira, é a tentativa que só conduziu a antinomias, cuja raíz última está em considerar a totalidade dos objetos como se fosse mais um magno objeto, submetido, portanto, às condições de conhecimento dos objetos que fazem parte dessa totalidade. Certamente, eu posso pensar que a totalidade dos objetos consiste em ser sistemas de coisas em si, mas esse pensamento não é conhecimento, no sentido estrito que essa palabra tem para Kant.

Fonte: Xavier Zubiri, Cinco Lições de Filosofia, É Realizações, São Paulo, 2012.